Cena do filme O último pub, de Ken Loach -  (crédito: Divulgação)

Cena do filme O último pub, de Ken Loach

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Acabou de estrear, no Brasil, o aclamado filme O último pub, do diretor Ken Loach, conhecido por trazer questões graves da contemporaneidade inglesa que afetam também a todos nós. O fio condutor desse tocante filme é o mesmo elemento do livro Biografia de um olho, do escritor Ibrahim Nasrallah: o olhar de uma mulher fotógrafa aos acontecimentos humanos. Ambos nos trazem uma questão fundamental: o refúgio e a necessidade de asilo, de acolhimento.


Em O último pub, a personagem Yara, uma refugiada síria que chega com sua família e tantas outras em uma pequena cidade “decadente” do interior da Inglaterra, é uma jovem fotógrafa de personalidade forte e coração dócil. Yara não se anestesiou pela dureza que os últimos anos têm trazido para si e sua família. Ao contrário, segue altiva, atenta aos movimentos sociais, realista sobre as dificuldades, mas esperançosa por uma vida comunitária fraterna e inclusiva.

 


Biografia de um olho é uma biografia da vida da primeira fotógrafa árabe e palestina, Karima Abbud, mundialmente conhecida, cuja vida e carreira se deram entre o fim do Império Otomano, em uma Palestina ainda próspera e contemporânea, e o período em que seu país começava a se desestruturar em virtude da ocupação/invasão inglesa. Ambas histórias carregam a sensibilidade feminina por trás das lentes de duas mulheres fotógrafas.

 

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A Palestina de Karima viveu a invasão inglesa e, posteriormente, dos sionistas. Hoje, ao que ainda restava de terra para o povo palestino, o mundo vem assistindo, de braços cruzados, à devastação daquele povo. O alvo em crianças e mulheres, em locais inadmissíveis, como hospitais e escolas, sugere prática de extermínio: mate mulheres e crianças para, assim, garantir o fim de um povo.

 

 

A Síria de Yara vive, há mais de 12 anos, intenso processo de emigração forçada e em massa de sua população que, embora bem mais recente que a vivenciada pelos afegãos, encontra semelhante ordem de grandeza. Segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), divulgado em julho último, o Afeganistão responde por 6,311 milhões de refugiados, enquanto a Síria, por 6,310 milhões.

 


Síria e Afeganistão, juntos, respondem por quase metade (48%) do total estimado de refugiados pela Acnur. Se acrescentarmos Sudão do Sul (2,292 milhões), Ucrânia (2,369 milhões), Myanmar (1,206 milhão), Sudão (1,088 milhão) e Somália (825 mil), esse total passa a responder por 78% de todos os refúgios ocorridos no mundo, nos últimos 17 anos. Em suma, 7 países vivem uma crise humanitária que acomete mais de 20 milhões de pessoas.


Aqueles que vivem situações de deslocamento interno dentro do seu próprio território constituem-se mais que o dobro daqueles que buscam refúgio. A Acnur estima 41,744 milhões de pessoas deslocadas, das quais 9,052 milhões (22%) encontram-se em um único país: o Sudão. Em seguida, vem a Colômbia (6,918 milhões), o Iêmen (4,516 milhões) e a Somália (3,860 milhões). Juntos, treze países respondem pelo deslocamento interno de milhões de pessoas no mundo.

 


Os números são crescentes, porém mais alarmantes ainda são os movimentos antirrefúgio em países “receptores” e os crescentes riscos de retrocesso político. Recentemente, um expressivo número de pessoas foi para as ruas de várias cidades do Reino Unido pedir o fim dos refúgios. Na semana seguinte, outro grupo, ainda mais expressivo, foi às ruas das mesmas cidades para apoiar os refugiados, dando testemunhos de humanidade, fraternidade e solidariedade.


O cineasta Ken Loach tem a habilidade de nos mostrar a cruel realidade que os sistemas econômico e político impõem aos mais fracos. Fez isso recentemente em “Eu, Daniel Blake” e em “Você não estava aqui”. O último pub narra a dualidade em relação aos refugiados. Mais do que isso, o filme é capaz de trazer a dor daqueles que migram, o incômodo daqueles que não os querem por lá e a empatia daqueles que se compadecem dos “irmãos sem pátria, sem nada”.

 


A coragem da fotógrafa palestina Karima Abbud retratava o início da queda de uma Palestina em franca expansão, de um país livre e repleto de mulheres livres e cultas e de economia pujante. A fotógrafa protagonista de O último pub tenta, por trás de sua lente, mostrar a dignidade de um povo que perdeu quase tudo; um povo que se encontra vulnerável às hostilidades do país “hospedeiro”.


Duas mulheres que utilizam seu olhar para revelar um mundo em franca decadência. A fotógrafa do início do século XX já via a fragilidade da condição de seu povo mediante a invasão devastadora dos ingleses. A fotógrafa da segunda década do século XXI revelava a agressividade de parte do povo inglês ante a busca por sobrevivência do povo sírio naquele território.


A lente feminina contou com o apoio de dois homens. Na vida real de Karima Abbud havia seu pai, um reverendo culto, crítico e impulsionador da carreira da filha. No cinema, o papel do protagonista dono do pub, TJ Ballyntine, foi, de forma silenciosa, tecendo uma rede de apoio e solidariedade ao povo sírio. Na junção do olhar por trás das lentes de uma mulher, havia o olhar admirado de um homem e, em ambos, a esperança de verem todos se sentarem juntos à mesa.