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Por Isabel Gonçalves
Outro dia em uma conversa com meus amigos sobre nossos gastos mensais, conheci a expressão “salário de visualização única”. É aquele dinheiro que aparece na conta, você olha, respira aliviado por alguns segundos e pronto, já sumiu. A piada, que virou desabafo coletivo, infelizmente resume bem a realidade financeira de boa parte dos brasileiros.
Um levantamento recente da fintech klavi, mostrou que 35% das pessoas gastam todo o salário em até três dias após receber. E mais: 18% zeram o saldo em menos de 24 horas, enquanto mais da metade termina o mês com menos de R$100 na conta.
Esses números mostram um retrato duro, mas real, de um país onde o dinheiro evapora rápido demais e onde o planejamento financeiro ainda é a ponta mais frágil da vida adulta. Mas o que faz o salário desaparecer tão rápido? E, mais importante, o que dá para fazer para mudar esse cenário?
O que os números revelam sobre a vida financeira dos brasileiros?
A pesquisa utilizou dados do Open Finance, o sistema financeiro integrado, e analisou as movimentações bancárias de mais de 7000 pessoas. O fato do salário “sumir” mostra o perrengue de quem vive com a renda praticamente toda comprometida entre dívidas, boletos e os gastos básicos de todo mês.
Isso não tem a ver só com o controle financeiro (ou a falta dele), mas sim com o acesso ao crédito fácil e o custo de vida no país. Para se ter uma noção, pesquisas mostram que o salário mínimo para sobrevivência no Brasil, considerando os custos da cesta básica, deveria ser de aproximadamente R$7000, quase cinco vezes maior do que o salário mínimo atual.
Sim, viver bem está cada vez mais caro. Mas também não dá para colocar a culpa toda no sistema. Afinal, apesar dos gastos mensais, a gente ainda precisa passar pelos outros 28 dias do mês. E o que você faz com as finanças nesses dias?
Por que o dinheiro acaba tão rápido?
Sabe aquele meme “meu salário pingou na conta e sumiu”? Ele é praticamente um resumo da vida financeira de muita gente. O dinheiro desaparece rápido porque, na maioria dos casos, ele já chega com destino certo.
E isso é resultado de um ciclo sem fim. O descontrole financeiro leva ao consumo antecipado e parcelado no crédito. E aí o dinheiro que você recebe vai para as contas anteriores, não restando nada pro mês seguinte.
Basicamente, o seu salário não é mais seu, você é um mero agente repassador. Isso sem contar que às vezes ele nem passa na sua mão. Desconto automático no consignado, o novo consignado CLT, débito e pix automático já sugam a conta na hora .
Por fim, enfrentamos um panorama que apesar das ferramentas disponíveis, a ausência de educação financeira prática ainda é um fator determinante. Poucos sabem planejar o fluxo de caixa pessoal, ou seja, o que entra, o que sai e o que realmente sobra.
O que são gastos mensais?
Quando a gente fala em gastos mensais, estamos falando de tudo aquilo que o seu dinheiro precisa cobrir mês após mês, do aluguel à fatura do cartão de crédito com todas as contas de streaming. Mas, principalmente, são as despesas que mantêm a vida em funcionamento: moradia, alimentação, transporte, contas de luz, água, internet e por aí vai.
O problema é que, na prática, muitas vezes esses gastos passam do limite do que o salário cobre. E não é raro que uma parte significativa da renda já chegue comprometida antes mesmo do pagamento cair na conta. Especialmente com parcelas de cartão, financiamentos e empréstimos.
Entender o que entra e o que sai do seu orçamento, através do planejamento financeiro, é o primeiro passo para enxergar onde o dinheiro está indo e onde pode economizar. Parece simples, mas é justamente aí que muita gente se perde: entre despesas fixas, variáveis e pequenos gastos que somam mais do que se imagina. Quando não há esse controle, o salário vira visualização única mesmo.
As consequências de viver no limite
Viver sempre no vermelho, ou perto dele, não é apenas cansativo, é perigoso. Quando o dinheiro acaba antes do fim do mês, o estresse financeiro vira rotina. As contas se acumulam, o crédito é usado como socorro e o ciclo de endividamento se repete.
Segundo dados do Serasa, o Brasil já ultrapassa 77 milhões de inadimplentes, e grande parte deles chegou a essa situação justamente por falta de fôlego no orçamento. Quando o salário é inteiramente consumido por dívidas e despesas fixas, qualquer imprevisto, seja uma conta de saúde, um conserto do carro, um aumento no aluguel ou até o gás acabar, pode virar uma bola de neve.
Sem uma reserva de emergência ou um planejamento mínimo, o futuro financeiro fica sempre na corda bamba. E é justamente essa instabilidade que impede o próximo passo: poupar, investir, realizar planos. Porque, no fim das contas, quem vive apagando incêndios não consegue construir nada sólido.
Como reverter esse cenário: passos simples para recuperar o controle
A boa notícia é que dá para mudar mesmo que a renda continue apertada. Organizar as finanças não é sobre ganhar mais (embora isso ajude), mas sobre fazer o dinheiro render melhor.
O primeiro passo é entender para onde o dinheiro está indo. Parece básico, mas muita gente não sabe quanto realmente desembolsa nos gastos mensais. Não sabe o quanto gasta no mercado, no transporte ou em lazer. Anotar tudo, seja num app, numa planilha ou até no caderninho, ajuda a visualizar o fluxo e identificar onde dá para cortar.
Depois, é hora de definir prioridades. Nem todo gasto é essencial. Às vezes, reduzir um pedido de delivery por semana ou cancelar uma assinatura esquecida já libera espaço no orçamento.
Outra estratégia é negociar dívidas. Muitas instituições oferecem descontos ou condições melhores para quem busca regularizar a situação. Sair do rotativo do cartão e do cheque especial, que são os mais caros, já traz um alívio enorme.
Por fim, crie o hábito de poupar, mesmo que seja pouco. Separar 5% ou 10% do salário logo no dia do pagamento é uma forma de garantir que o dinheiro não desapareça antes de você decidir o que fazer com ele.
Conclusão: o valor de ver o dinheiro duas vezes
O tal “salário de visualização única” é mais do que uma piada entre amigos, é um espelho do nosso tempo. Um reflexo de uma sociedade que trabalha muito, ganha pouco e vive tentando equilibrar contas que nunca fecham.
Mas também é um lembrete de que a relação com o dinheiro é, acima de tudo, uma relação com o tempo, com o cuidado e com o futuro. Quando o salário desaparece em três dias, não é só o saldo que some, é a sensação de segurança, de escolha, de respiro.
Romper esse ciclo passa por reaprender a olhar para o dinheiro sem medo, sem culpa e sem tabu. É entender que planejar não é se privar, é se permitir. E talvez o segredo não esteja em ganhar mais, mas em fazer o dinheiro ficar. Porque o resultado do nosso esforço deveria ter direito a duas, três, quatro, trinta visualizações.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
