Discurso de ódio não é liberdade de expressão
Como o direito de incomodar implica em responsabilidade
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO

Por Alexandre Bahia
Uma recente polêmica envolvendo a autodenominada feminista Isabelle Cêpa reacendeu o debate sobre os limites da liberdade de expressão no Brasil. Em publicações nas redes sociais, ela afirmou que a deputada federal Érika Hilton — a mulher mais votada em sua cidade — “é um homem”. Posteriormente, anunciou ter buscado asilo político no Leste Europeu.
A questão que se coloca é: haveria base jurídica para a concessão de asilo? Entendemos que não. O asilo político tem por objetivo proteger indivíduos perseguidos em razão de risco real de tortura, atos degradantes ou violações de direitos humanos. Nada disso ocorreu no caso de Isabelle, que deixou o país para evitar os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a homofobia e a transfobia como espécies de racismo (ADO. 26).
Liberdade de expressão não é absoluta
A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão, mas estabelece dois requisitos: a proibição do anonimato e a responsabilização em caso de dano. Esse direito encontra limites quando colide com outros fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a honra e a identidade.
Ao negar a identidade de gênero de uma pessoa, esta manifestação deixa de ser mera opinião e passa a configurar intolerância. O STF já consolidou esse entendimento em decisões que reconhecem o direito de pessoas trans de alterar nome e gênero no registro civil (ADI. 4.275).
Nesse sentido, afirmar que uma mulher trans “é um homem” pode configurar crime de injúria racial (art. 2º-A da Lei de Racismo) e levar à responsabilização civil por danos morais.
Reclamação da deputada e a negativa do STF
O ministro Gilmar Mendes, do STF, reafirmou que a decisão que reconheceu a homotransfobia como racismo está em vigor. A deputada fez uma reclamação ao STF diante da negativa do juiz em dar andamento à ação, mas, segundo o ministro, entendeu que não se tratava de injúria racial, por isso, explicou Mendes, a reclamação não era o meio adequado para se contestar a decisão.
Nada impede, no entanto, que a deputada recorra pelos caminhos normais da Justiça para reverter a decisão do juiz de 1ª instância. É importante frisar que a decisão do STF não nega a existência de crime de injúria racial já que não discute o mérito.
Leia Mais
Quando a fala se transforma em discurso de ódio
A diferença central entre liberdade de expressão e discurso de ódio está no reconhecimento do outro como alguém com o mesmo nível de direitos. O discurso de ódio surge quando a fala nega ao destinatário a condição de sujeito de direitos, gerando humilhação, constrangimento ou exclusão. Segundo a lei de racismo, o juiz deve considerar criminoso o tratamento a uma pessoa/grupo minoritário que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida e que normalmente não seria usado a outros grupos: ninguém falaria a Isabelle que ela não é uma mulher, por exemplo.
Estudos mostram que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, com expectativa média de vida de apenas 35 anos, segundo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Apesar disso, o Congresso segue omisso na criação de leis específicas para proteger a população LGBTQIA+. Diante desse vácuo, o STF determinou que a Lei de Racismo deve ser aplicada a casos de homofobia e transfobia, assim como já havia estendido a proteção a ofensas contra judeus em decisão anterior (Habeas Corpus 82.424).
Feminismo e exclusão
Outro ponto do debate é a apropriação do termo “feminismo” por correntes que excluem mulheres trans. Essa visão, próxima ao discurso da extrema direita, é rejeitada por vertentes como o transfeminismo, que reconhecem a pluralidade de experiências femininas, atravessadas por gênero, raça, classe e outros marcadores sociais.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
O alerta da ONU
Em diferentes ocasiões, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tem chamado atenção para os riscos da naturalização de discursos intolerantes: “Nunca devemos esquecer a facilidade com que o discurso de ódio pode transformar-se em crime de ódio; o silêncio diante do fanatismo é cumplicidade.”
O autor Alexandre Bahia é graduado em direito e é professor, com mestrado e doutorado.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.