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Democracia e o banco dos réus – o maior teste da história recente do Brasil

Julgamento do 8 de janeiro põe à prova a maturidade democrática brasileira celebrada internacionalmente, enfrentando o país divisão interna e pressão externa

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Por Vinícius Ayala*

A revista The Economist, considerada a bíblia da economia por governos por mercados, publicou uma capa que gerou grande repercussão, retratando Jair Bolsonaro com o mesmo chapéu de chifres do "xamã do Capitólio" (Jake Shansley), figura proeminente na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 nos EUA. A capa é intitulada “O que o Brasil pode ensinar à América: O julgamento de Jair Bolsonaro." 

Inicia sua reportagem com uma descrição que se encaixa perfeitamente na situação brasileira: "Imagine um país onde um presidente polarizador perdeu sua tentativa de reeleição e se recusou a aceitar o resultado. Ele declarou a votação fraudada e usou as redes sociais para incitar seus apoiadores a se rebelarem. Eles o fizeram aos milhares, atacando prédios do governo e então a insurreição fracassou. O ex-presidente enfrentou uma investigação criminal e os promotores o levaram a julgamento por planejar um golpe”.

A matéria da The Economist destaca a eficácia do Brasil na administração do período pós-eleitoral e dos eventos ocorridos em 8 de janeiro, apresentando um contraste com a situação nos Estados Unidos. O ponto central é que, apesar do histórico de uma ditadura militar entre 1964 e 1985, o Brasil conseguiu fortalecer suas instituições para evitar a repetição de práticas autoritárias. A revista sugere que o Brasil está, inclusive, servindo de exemplo para os Estados Unidos no que diz respeito ao processo de responsabilização do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

A revista enaltece o Brasil como uma "grande democracia da América", especialmente pelo papel do Supremo Tribunal Federal (STF) como uma "barreira contra o autoritarismo". Em contrapartida, os Estados Unidos são descritos como um país que, sob a administração de Donald Trump, tem se tornado "mais corrupto, mais protecionista e mais autoritário". A publicação argumenta que o Brasil está empenhado em "estabelecer salvaguardas e reforçar sua democracia", enquanto os EUA, sob Trump, têm adotado posturas que lembram "um país de terceiro mundo", incluindo a perseguição de adversários e um comportamento que desrespeita as instituições democráticas. A revista menciona que Trump promove um "intervencionismo inédito", dando a impressão de que há "um imperador na Casa Branca". 

Tanto o evento de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos quanto o de 8 de janeiro de 2023 no Brasil foram motivados por líderes com tendências autocráticas: Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil. Ambos os incidentes ocorreram como uma tentativa de contestar resultados eleitorais legítimos; nos EUA, a vitória de Joe Biden, e no Brasil, a de Lula. 

Apesar das semelhanças, as consequências foram distintas. No Brasil, as instituições democráticas funcionaram adequadamente, resultando em processos judiciais contra Bolsonaro que podem levar à sua condenação e inelegibilidade. Em contraste, Trump conseguiu manter sua posição e até mesmo se eleger, apesar das controvérsias, e a legislação americana permitiria que ele concorresse novamente mesmo se condenado ou preso. 

A revista The Economist elogia a resistência das instituições brasileiras, que se mostraram robustas mesmo sob pressão externa, como a tentativa de Trump de influenciar o governo brasileiro com ameaças de tarifas para libertar Bolsonaro.

Enquanto a revista The Economist celebra a "maturidade democrática" do Brasil, o país se prepara para o que pode ser o julgamento mais significativo de sua história recente. Esta coincidência temporal revela um paradoxo fundamental: no exato momento em que a comunidade internacional elogia a resistência institucional brasileira, a democracia do país enfrenta seu teste mais complexo e decisivo desde a redemocratização. 

O espelho internacional: como o exterior nos vê versus nossa realidade interna

A matéria do The Economist não é apenas um elogio casual, mas um reconhecimento profundo de que o Brasil conseguiu navegar por águas turbulentas que afundaram outras democracias. A revista destaca como o país desenvolveu anticorpos institucionais contra o vírus autoritário que contaminou potências estabelecidas. O sistema eleitoral brasileiro, constantemente atacado por narrativas falsas, mostrou-se não apenas tecnologicamente robusto, mas socialmente legitimado. 

As urnas eletrônicas, alvo preferencial dos descontentes com resultados adversos, resistiram ao teste mais severo que qualquer sistema democrático pode enfrentar: a tentativa organizada de seu descrédito por parte de autoridades constituídas. 

No entanto, este reconhecimento internacional contrasta com a realidade interna que o julgamento dos atos golpistas revela. Enquanto o mundo nos vê como exemplo de resiliência democrática, o processo judicial expõe as feridas ainda abertas na sociedade brasileira. Pesquisas mostram que grande parte dos brasileiros ainda alimentam dúvidas sobre a legitimidade eleitoral. O julgamento que se inicia não é, portanto, apenas sobre eventos passados, mas sobre a capacidade do país de curar essas divisões sem sacrificar a responsabilização legal. 

A revolução jurídica: julgando os mandantes, não apenas os executores

O processo que se inicia representa uma virada paradigmática na tradição jurídico-política brasileira. Pela primeira vez na história do país, não se julgam apenas os executores de um ataque à democracia, mas seus idealizadores e financiadores.

Esta inversão da pirâmide de responsabilização rompe com um padrão histórico onde as elites frequentemente escapavam ilesas de crises políticas que elas próprias geraram. 

Os elementos probatórios reunidos pelo Ministério Público Federal pintam um quadro perturbador de meticuloso planejamento. Não se tratou de um evento espontâneo ou de um protesto que escapou do controle, mas de uma operação deliberada para subverter a ordem constitucional. As transações financeiras suspeitas, as reuniões documentadas entre civis e militares, e a cronologia dos eventos mostram uma arquitetura do caos cuidadosamente construída. O julgamento precisará navegar por esta complexa teia de relações de poder, onde as linhas entre política, finanças e instituições tornaram-se intencionalmente borradas. 

O contra-ataque autoritário: a internacionalização do conflito

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A reação dos acusados segue um roteiro que se tornou familiar em dramas democráticos globais, mas com particularidades brasileiras alarmantes. A fuga do deputado Eduardo Bolsonaro para os Estados Unidos, onde ele, paradoxalmente, pede intervenção estrangeira enquanto continua recebendo seu salário de representante do povo brasileiro, representa uma nova fronteira na audácia antidemocrática. Mais preocupante ainda é sua bem-sucedida infiltração nos círculos de poder norte-americanos, onde conseguiu articular sanções contra ministros do Supremo Tribunal Federal usando a Lei Magnitsky - instrumento criado precisamente para proteger defensores de direitos humanos, não para perseguir juízes que combatem golpes de Estado. 

Esta internacionalização do conflito judicial revela as novas fronteiras das batalhas democráticas contemporâneas. As ameaças já não vêm apenas de dentro das fronteiras nacionais, mas circulam por redes transnacionais de poder que conectam extremistas locais a interesses geopolíticos globais. As sanções norte-americanas contra ministros do STF, sob a justificativa de "defesa dos direitos humanos", mostram como instrumentos internacionais podem ser distorcidos para servir a agendas de desestabilização política. 

A hipocrisia desmascarada: os direitos humanos dos golpistas

Um dos aspectos mais reveladores deste processo é a súbita conversão dos acusados ao evangelho dos direitos humanos. Os mesmos que por anos propagaram o lema "bandido bom é bandido morto", que defenderam o endurecimento punitivo e o encarceramento em massa, descobrem-se agora fervorosos defensores das garantias processuais e da dignidade carcerária.

Esta conversão oportunista não apenas revela uma profunda hipocrisia, mas expõe a seletividade de um discurso que sempre entendeu os direitos humanos não como princípios universais, mas como privilégios de casta. 

O paradoxo é ainda mais gritante, quando observamos que estes autoproclamados defensores dos direitos humanos, buscaram alianças com potências que mantêm sistemas carcerários notoriamente brutais, e que têm histórico consistente de violação de direitos fundamentais. A defesa seletiva de princípios que eles mesmos negaram a outros durante anos é, talvez, a mais clara demonstração de que seu suposto compromisso com valores democráticos é meramente instrumental. 

O laboratório democrático brasileiro: lições para o mundo

O julgamento que se inicia, transcende em muito as fronteiras nacionais. O Brasil transformou-se involuntariamente em um laboratório vivo, onde se testam respostas para algumas das questões mais prementes da democracia contemporânea: Como responsabilizar elites poderosas sem alimentar narrativas de perseguição política? Como garantir processo justo em casos que envolvem a própria sobrevivência do sistema judicial? 

As lições que emergem deste processo já começam a circular globalmente. A postura do Supremo Tribunal Federal, buscando equilibrar rigor processual com transparência midiática; o papel da imprensa brasileira e a resiliência das instituições eleitorais perante ataques coordenados - todos esses elementos compõem um manual de sobrevivência democrática para nações que enfrentam crises similares. 

Conclusão: O Verdadeiro Teste da Maturidade Democrática

O julgamento da organização criminosa - orcrim - representará muito mais que uma mera sentença judicial. Será o termômetro definitivo da maturidade democrática que The Economist identificou no Brasil. O verdadeiro teste não está na condenação ou absolvição dos acusados, mas na capacidade do país de conduzir este processo com rigor legal, transparência institucional e respeito ao devido processo legal - mesmo quando lidando com aqueles que demonstraram profundo desprezo por esses mesmos valores. 

Se o Brasil conseguir navegar por este desafio histórico sem cair nas armadilhas do revanchismo ou da impunidade, terá oferecido ao mundo algo mais valioso que qualquer recurso natural: a prova de que é possível sobreviver e crescer após um ataque severo à democracia. O julgamento que se inicia é, portanto não o ponto final de uma crise, mas o capítulo inaugural de uma nova fase na história democrática brasileira - uma que o mundo observa com esperança e apreensão.

*Vinícius Ayala é advogado e professor de Direito Constitucional

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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