Carlos Starling
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SAÚDE em evidência

O Rio que sangra e amanhece

O que vemos no Rio não é apenas um problema local, mas um espelho que reflete a falência moral de um projeto de nação

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O Rio de Janeiro desperta lindo para os desavisados. Na manhã da última terça-feira de outubro, o dia amanheceu com milhares de tiros e nenhum canto de pássaro. Mais uma "operação policial" – mantra político, palavra de jornal, neutra e fria, ocultando o drama real. Saldo de 121 mortos em um só dia, tragédia que ultrapassa até o massacre do Carandiru.

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Em pleno estado de direito, a direita faz as próprias leis e define como sucesso o que aos olhos de países civilizados deveria ser entendido como barbárie. Certamente se inspiraram na ação do governo Netanyahu na faixa de Gaza, onde recentemente estagiaram: "Se ele pode lá, nós também podemos aqui". O curioso é que as pesquisas de opinião registram apoio popular a medidas dessa natureza. Cidadãos de bem certamente não percebem a sutileza de que uma sociedade que opta por matar todos os seus bandidos, se transforma também numa sociedade igualmente assassina. Sem a garantia de direitos civilizatórios, a próxima vítima pode ser qualquer um, inclusive eu e você que me lê; basta que assim nos definam.

A cidade maravilhosa parece já acostumada ao horror, embora, nos becos, as mães acordem sem fôlego, esperando não ouvir o pior. Blindados de aço desfilam nos morros como carros alegóricos. Helicópteros pairam, fumaça cobre o sol. De longe, tudo parece distante. Mas, na cerâmica quebrada das casas, a rotina sangra em segredo e chinelos sobram pelo caminho.

Como diria Hannah Arendt, estamos diante da "banalidade do mal" em sua forma mais crua. O mal não como exceção monstruosa, mas como parte da rotina administrativa, burocratizada, aplaudida. E as estatísticas, sabemos bem, têm o poder perverso de transformar vidas em números, dor em gráficos, famílias destruídas em percentuais aceitáveis de "danos colaterais".

As entidades civis redigem manifestos. Escrevem que "os impactos da violência armada vão além das estatísticas". Vão, sim, adoecem a vida que se tenta resguardar entre portas frágeis, tiram de jovens o direito ao futuro e das crianças a inocência precoce. Onde falta Estado, proliferam o crime organizado, igrejas e mosquitos.

"Olho por olho, e o mundo acabará cego", como disse Gandhi. Exatamente isso que testemunhamos nessa triste manhã de outubro. Uma cegueira coletiva que confunde vingança com justiça, extermínio com segurança. E assim seguimos, em cidades que se afogam no próprio sangue enquanto fingem normalidade.

Enquanto escrevo, penso no luto estampado nas ruas estreitas do Alemão e da Penha. As perguntas se acumulam: quem lucra com tanto medo? Quem se alimenta de corpos empilhados sob a bandeira da lei? O manifesto da Fiocruz clama: "Ignorá-lo é irresponsabilidade administrativa, tratá-lo via necropolítica é alimentá-lo". E o Estado segue, escolhendo a quem assegurar o direito de viver e de lucrar com o vácuo temporário de poder na terra de ninguém.

Albert Camus, em sua lúcida percepção sobre a violência, diria que estamos diante da "peste" – não a doença física, mas a moral, que contamina instituições e consciências, fazendo com que aceitemos o inaceitável, naturalizemos o absurdo, aplaudamos a barbárie em nome de uma segurança ilusória. E o mais trágico: uma peste que nos faz cúmplices, mesmo quando nos julgamos apenas espectadores.

A resistência está nos pequenos gestos: na panela acesa; na criança que, mesmo sob tiro, reinventa a alegria atrás de muros; no trabalhador que desce o morro, ciente do risco, para garantir o pão. A crônica de cada dia é de sobrevivência, não de glamour. O manifesto pede planejamento, cidadania, respeito – palavras já cansadas de esperar por ações efetivas.

Martin Luther King disse que "a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar". E o que vemos no Rio não é apenas um problema local, mas um espelho que reflete a falência moral de um projeto de nação. Quando aceitamos que existam cidadãos de primeira e segunda categorias, quando aplaudimos a morte de alguns para garantir a suposta segurança de outros, estamos corroendo os próprios fundamentos da democracia e da dignidade humana.

A cidade oscila, doente, entre festa e velório. O Rio mistura esperança, carnaval, beleza, futebol e covas rasas. Não faltam pedidos de "diálogo, paz e vida", mas faltam ouvidos abertos. No macabro tabuleiro político vale tudo, até mesmo escalar montanhas de corpos e surfar em ondas de sangue. A violência institucionalizada não apenas mata corpos, mas desumaniza todos nós – vítimas, algozes e testemunhas silenciosas.

Ainda assim, teimosos persistem: acendem velas em vielas, escrevem manifestos, recolhem feridos, denunciando o absurdo de naturalizar a barbárie. Porque o Rio, de tantas quedas, aprendeu a fingir resiliência; mas cansa. Cansa carregar o peso dos mortos anônimos, cansa sorrir para turistas enquanto se chora pelos filhos perdidos.

Walter Benjamin escreveu que "nem os mortos estarão a salvo do inimigo, se ele for vitorioso". E quem são os inimigos aqui senão a indiferença, o ódio institucionalizado, a política que transforma a morte em espetáculo e método? Os mortos do Alemão, da Penha, de tantas outras comunidades não estão a salvo – são transformados em números, em justificativas para mais violência, em peças descartáveis de um jogo macabro de poder.


Por fim, amanhece – sempre amanhece. A luz bate nos destroços, nas mãos sujas de sangue e na consciência popular entorpecida pela tragédia. O povo segue vivendo, sofrendo, sonhando que, um dia, segurança seja abrigo, não sentença.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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