Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

O Rio que sangra e amanhece

Cada morte dessas é o vírus de uma epidemia antiga: a violência que corrói o cotidiano, o refúgio, o lazer, o descanso

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Dizem que o Rio acorda sempre bonito. No entanto, às vezes, o amanhecer vem com gosto de ferrugem na garganta e o sol parece hesitar, como se também tivesse medo de entrar pelos becos onde a vida custa caro demais. Naquela terça-feira de outubro, a cidade despertou não com pássaros, mas com estampidos — uma sinfonia áspera e descompassada que atravessava as janelas e parava o coração das mães antes mesmo do café da manhã.

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Mais uma “operação policial”. Nome técnico quase limpo, que cabe bem em manchete. Um eufemismo de guerra. Na prática, foi uma rajada curta e grossa na carne da cidade e do país. Cento e vinte e uma vidas, disseram os jornais ao fim do dia — mas os jornais apenas somam, não sentem. O número, terrível, já supera o do Carandiru, e o espanto se repete: outra vez a morte fez expediente em horário comercial, com conferência de imprensa à tarde e os corpos ainda quentes largados para trás.

A Fiocruz — guardiã discreta da saúde e da razão — soltou um manifesto. Pediram “Segurança Pública Cidadã”. Um nome bonito também, cheio de maiúsculas. Mas o texto, nas entrelinhas, trazia mais que burocracia: vinha impregnado de luto. Dizia, com uma serenidade de quem cura feridas, que o problema é mais que estatística. Que cada morte dessas é o vírus de uma epidemia antiga: a violência que corrói o cotidiano, o refúgio, o lazer, o descanso. Que invade os pulmões invisíveis da cidade e vai matando sem manchete, um pouco a cada dia.

Na Penha, no Alemão, o silêncio começou quando as balas pararam. É sempre depois dos tiros que vem o desespero. As mães começaram a descer os morros de chinelo e alma nua, procurando filhos que talvez já não respirassem. O choro ecoava nas vielas como cântico antigo, sem padre e sem missa. O Rio se transformou numa capela improvisada, com velas acesas nas esquinas e crianças olhando sem entender — apenas decorando, cedo demais, o vocabulário da dor. Um pai recolhe o corpo do filho morto. Bandido? Sim, mas filho. Perdido duas vezes: para o crime e para o Estado.

A televisão mostrava as imagens aéreas: caveirões como formigas gigantes desfilando entre casas frágeis, helicópteros pairando, fumaça subindo. De cima, tudo parece parte de uma lógica. De perto, não há lógica alguma: há uma panela no fogo, uma avó gripada, uma menina que ontem brincou de boneca e hoje se esconde sob a cama. Nenhum drone enxerga isso. O olhar de cima desumaniza; o olhar de dentro falta.

No manifesto, lia-se: “Política de segurança pública se constrói com etapas planejadas e estruturantes...” Palavras bem escolhidas, merecidas, necessárias. Mas quem vive o barulho sabe que a segurança pública, ali, é antes o exercício de sobreviver um dia após o outro — como uma goteira insistente sobre a cabeça. A cada manhã o povo desce o morro sem saber se volta. E ainda assim vai, porque há roupa para lavar, metrô para pegar, conta para pagar. A rotina permanece como teimosia da esperança.

A cidade é um grande corpo, sua pele — asfalto, telhado, morro, viela — sangra sem parar. A dor do Rio não é manchete de um dia; é ferida de séculos. Por trás de cada corpo há um retrato em cima da geladeira, um uniforme dobrado, um sonho miúdo de estabilidade. O Rio continua lindo, dizem os folhetos turísticos, mas ninguém mostra as olheiras da cidade — profundas, roxas, intermináveis.

A necropolítica, palavra difícil e arrogante, virou vocabulário cotidiano. É o governo pela morte, a gestão do descarte. O tiro político tem CEP e cor definidos; o fuzil aprende geografia de ouvido: sabe a diferença entre Leblon e Complexo da Penha. No primeiro, é escolta. No segundo, é sentença.


E, no entanto, o documento da Fiocruz insiste: “É preciso valorizar o diálogo, a paz e a vida.” Sim, é preciso. Mas diálogo com quem, se metade da cidade não fala e a outra metade não escuta? Paz para quem, se há quem viva de vender o medo? E vida — essa palavra tão esmagada — o que significa para um menino que aprendeu a correr antes de aprender a ler?

No hospital, vejo de perto os efeitos da guerra. A medicina das balas é silenciosa e suja. Chegam feridos em silêncio, às vezes trazidos por amigos, às vezes por ninguém. O corpo exala o cheiro metálico do pavor. Quem vive à beira da morte aprende a orar com os olhos abertos. Escrevo porque curar é também testemunhar. E porque as feridas, quando não se escrevem, apodrecem no esquecimento.

A violência é também doença: infecciosa, contágio de alma. Transmite-se na falta, na miséria, na indiferença. Não há antibiótico contra descaso. Toda bala perdida vem de um Estado que se perdeu antes.

As vozes do manifesto pedem “formação cidadã das forças de segurança”, “articulação efetiva”, “transparência e controle social”. São palavras equilibradas como quem anda em corda bamba. Em cada linha, há uma súplica: parem de normalizar o horror. Mas a cidade já tem o ouvido com um zumbido crônico e viciado. A sirene virou canção de ninar. O caveirão é figura de rotina, como o carteiro ou o padeiro. E o medo, essa bruma que não se dissipa, atravessa gerações como herança involuntária.

O Rio lindo, cercado de mar e morro, parece sempre um corpo em febre. Febre de desigualdade, febre de pressa, febre de esquecimento. A cada chacina, a cidade diz “basta”, mas o eco se perde no vento da Baía. Logo o noticiário muda: vem o carnaval, o futebol, a novela. A ferida fica ali, latejando à sombra. O Brasil inteiro assiste, comenta, se indigna — e esquece.

Mesmo assim, há teimosos. Os que acendem vela em cada esquina, os que distribuem sopão de madrugada, os que oferecem abrigo quando a polícia desce o morro. Há também os que escrevem manifestos e os que os leem, acreditando que a palavra ainda possa mover alguma coisa. Essas pessoas são a febre, e também o remédio. São as que mantêm a respiração do Rio — ofegante, mas viva.

À noite, fechei os olhos e tentei imaginar as 121 histórias apagadas em um único dia. Cada uma delas era alguém com lembranças, uma risada guardada, uma promessa quebrada. Penso nas mãos que ficaram sem o gesto diário do “até logo”, ou no “perdeu mané”. Penso nos corredores de hospital que se enchem de perguntas sem resposta. Penso no quanto é árduo existir num país onde a morte se tornou assunto banal.

Escrever — dizem — é resistir à indiferença. Então escrevo. Porque o silêncio, este sim, é cúmplice. E porque, talvez, o que o manifesto pede — diálogo, paz, vida — comece de gestos miúdos como este: o de lembrar.

O Rio que mata também ama. É uma cidade bipolar: celebra de dia, chora à noite, ou vice-versa. É mulher e ferida, é menino de boné jogando bola na laje, é mar e um Cristo impotente de braços abertos sobre a linda Guanabara. O pecado do Rio é nunca morrer completamente, mesmo quando parece acabado. Sempre há uma música nova nascendo em algum canto: de frente para o mar e de costa para o Brasil. Sempre há gente tentando viver.

Mas a beleza não pode mais servir de desculpa. A cada vez que a cidade se encanta, o poder podre se aproveita. Enquanto se comemora o pôr do sol no Arpoador, alguém lá no fundo do mapa está cavando uma cova rasa. A geografia do encanto convive com a topografia da dor.

“Política de segurança pública se constrói com etapas planejadas...”, dizia o manifesto. Talvez se construa também com decência e escuta. Talvez o primeiro planejamento fosse simplesmente desistir da guerra. Mas desistir exige coragem — e coragem, nesse país, falta mais que tudo.

Quem viverá para contar essa história? Os números ficam, mas as vozes se perdem. É preciso escrever na areia, no muro, no jornal, no coração. Que saibam, no futuro, que houve um dia em que o Rio chorou. Que médicos, cientistas e cidadãos insistiram em dizer que vidas importam, mesmo quando o Estado se comportava como máquina cega. Que alguém, na fumaça das barricadas, parou para escutar o soluço de uma mãe. E que disso, dessa escuta, nascia o começo de alguma humanidade.

De manhã, o sol volta. Sempre volta. Bate nas janelas quebradas, nos tetos de zinco, nas faixas brancas erguidas em protesto. Nos corpos enfileirados numa praça e largados para trás como lixo e estaca de um palanque político com cheiro de enxofre. O Rio, cansado, toma seu café amargo e vai trabalhar. Fingindo que o dia é apenas mais um. Mas há algo diferente no ar: talvez seja a fumaça da pólvora, talvez a brisa da esperança. Porque mesmo ferida, a cidade é insistente — quer viver.

Escrevo com a mão tremendo, como quem sutura uma ferida imensa. Porque escrever é preciso; calar, não.

O Rio, o país e o mundo estão doentes. Mas ainda respiram. E enquanto respiram, há de haver quem sonhe com o impossível: uma segurança pública que proteja, um governo que acolha em vez de ferir, e um povo que — apesar de tudo — continue acreditando que paz é mais que palavra, e vida é mais que sobrevivência.

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