Um mosquito na Islândia
O mosquito zumbe, impertinente, no ouvido da civilização. Não é apenas um inseto, é um símbolo de que nossa arrogância tem asas curtas, mas consequências longas
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Era um dia qualquer na Islândia, aquele pedaço do planeta onde a maior ameaça à vida costumava ser o frio, um vento cortante ou, no máximo, os raros ursos polares perdidos em icebergs vindos da vizinha Groenlândia. Até que apareceu ele: o mosquito. Não um mero inseto, mas o fruto da nossa estupidez coletiva, esse crime continuado contra o planeta que insistimos em chamar de "progresso".
A pequena Anna, de 6 anos, olhando fascinada para aquele bicho estranho voando próximo ao seu nariz, exclamou: "Mãe, o que é isso? Um passarinho minúsculo que voa e faz barulho?". A mãe, perplexa, coçou a cabeça e retrucou meio perdida: "Filha, não sei... talvez um pensamento voador?". Pois é, a ciência não avisou às mães irlandesas de que teriam que lidar com perguntas biológicas complexas num mundo gelado do norte do Atlântico.
Aquele minúsculo invasor, com suas asas transparentes e pernas finas como fios de cabelo, pousou na parede branca da casa de Anna. A menina aproximou-se curiosa, enquanto a mãe procurava desesperadamente no Google, que diabos seria aquela criatura alienígena. "Culicidae", dizia a tela. Mas como explicar taxonomia para uma criança que ainda acredita que os elfos constroem casas no seu jardim?
O invasor pousou na parede branca como uma mancha de sangue na consciência humana. A ironia é cruel: na terra dos vulcões e das geleiras, um inseto tropical faz sua estreia. Somos todos cúmplices nessa tragicomédia climática, onde o menor dos seres vem anunciar o maior dos desastres.
O mosquito, esse ser ectotérmico que se deleita com o calor, encontrou na Islândia não apenas um novo lar, mas um testemunho irrefutável de nossa insanidade. Transformamos a geladeira em forno, e agora nos espantamos quando o sorvete derrete antes da primeira lambida.
Enquanto Anna observava maravilhada aquela novidade, os cientistas da Universidade de Reykjavík já anotavam em seus cadernos o fenômeno. Um mosquito na Islândia é como um pinguim no Saara – algo está errado, muito errado. Não é uma anomalia estatística – é um epitáfio para o mundo que conhecíamos.
As estatísticas impressionam e assustam. Mundialmente, os mosquitos são os seres vivos que mais matam humanos anualmente. Estima-se que cerca de 830 mil pessoas perdem a vida por doenças transmitidas por mosquitos, como malária, dengue, zika, chikungunya e febre amarela. Em comparação, os ursos polares, feras majestosas e icônicas do Ártico, matam muito pouco: estima-se que na Islândia não tenha registro recente de ataque fatal.
Nomundo todo, menos de 10 mortes por ursos polares são relatadas por década. Pelo contrário, são os ursos que estão em extinção: “a Ademg informa. Sai urso, entra mosquito no time da Islândia”.
Ou seja, de um lado temos um assassino voador minúsculo capaz de causar pandemias globais; do outro, um gigante peludo que felizmente não vem causando pânico no país da aurora boreal. É o tipo de estatística para guardar no bolso junto com o protetor solar e o repelente no verão islandês.
Jornais locais e do mundo inteiro, com suas manchetes sensacionalistas sobre o "primeiro mosquito", apenas reforçam nossa mediocridade intelectual. Tratamos como espetáculo o que deveria ser luto. As farmácias islandesas que agora se apressam em estocar repelentes são como orquestras que ensaiam para o naufrágio – um gesto elegante, mas inútil diante do inevitável. O mosquito é apenas um mensageiro que chegou atrasado aos ouvidos roucos de tanto ouvir, como dizia o conterrâneo Benedito Valadares.
Para Anna, em sua inocência, o mosquito é apenas uma curiosidade. Para nós, que já perdemos o direito à inocência, deveria ser um tapa na cara. Mas somos mestres em transformar tapas em carícias, em diluir verdades amargas em piadas.
A verdade é que o mosquito na Islândia não é um incidente isolado, mas parte de uma sentença que nós mesmos escrevemos. Cada grau a mais no termômetro global é uma palavra nesse veredito, cada espécie em território estrangeiro é um parágrafo dessa condenação
Se Anna soubesse que seu "pensamento voador" é o prenúncio de um pesadelo no qual sua ilha se tornará irreconhecível, talvez sua curiosidade se transformasse em indignação. E indignação é o que nos falta – esse luxo moral que trocamos por conveniências e retóricas estéreis.
O mosquito zumbe, impertinente, no ouvido da civilização. Não é apenas um inseto, é um símbolo de que nossa arrogância tem asas curtas, mas consequências longas. Enquanto debatemos trivialidades, o picolé derrete e o mundo que conhecíamos se desfaz em gotas de lágrima salgada.
Está aí a lição amarga que nos recusamos a aprender: às vezes, o menor dos insetos é o maior dos juízes. E seu veredito, escrito com o sangue que nos suga, é implacável: culpados, todos nós.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
