Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

Oblivion

O instrumento parecia respirar em suas mãos, expandindo-se e contraindo-se como um organismo vivo

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"Oblivion" pode referir-se a várias coisas, incluindo o ato de esquecer ou um estado de esquecimento (do latim oblvsc, "esquecer").

Para mim, significa bem mais que isso. Significa Piazzolla. Uma das músicas mais lindas de Astor Piazzolla. Recentemente, descobri as 15 melhores versões dessa música. Cada uma melhor que a outra. Mas nenhuma melhor do que a do próprio Piazzolla, tocando-a na minha frente em 1988, em Belo Horizonte.

Foi num dia chuvoso no meio de um feriado prolongado em que a cidade estava vazia e sonolenta. A chuva caía pesado, transformando as ruas em pequenos rios urbanos. Normal para BH, que pareciatersido abandonada por seus habitantes. Sozinho em casa, ouvi o anúncio do show e parti à procura de um ingresso, com pouca esperança detersucesso. Surpreendentemente, foi fácil!

As ruas estavam desertas, exceto por alguns carros que deslizavam pelo asfalto molhado. Cheguei à bilheteria do teatro com os sapatos encharcados e a barra da calça grudando nas pernas.

Piazzolla me foi apresentado por uma amiga que me emprestou o LP “Reunión Cumbre”, em que ele toca com o saxofonista Gerry Mulligan. Uma preciosidade, custei para devolvê-lo. Lembro-me de passar noites inteiras ouvindo aquelas faixas, com um copo de vinho tinto na mão, deixando-me transportar para as ruas de Buenos Aires que eu não conhecia, mas que imaginava perfeitamente por meio daquelas notas musicais e do próprio Malbec.

Cheguei ao teatro quase em cima da hora. Estranhamente, havia um movimento pequeno para um show daquele porte. Entrei para a plateia achando que não encontraria mais lugar. Para minha surpresa, quase todos os lugares estavam à minha disposição. Apenas alguns gatos pingados no imenso teatro. Imaginei: o show foi ou será cancelado. Não foi.

O teatro, com sua arquitetura imponente, parecia ainda mais majestoso quando vazio. As luzes da plateia começaram a diminuir, criando sombras que dançavam pelas paredes. Escolhi um lugar central, naquintafileira – nem muito perto, nem muito longe. Perfeito para absorver cada nota.

Um senhor de cabelos grisalhos sentou-se duas cadeiras ao meu lado. Trocamos olhares cúmplices, como quem compartilha um segredo. "Inacreditável, não é?", ele comentou. "Piazzolla merecia um teatro lotado". Concordei com um aceno, mas, no fundo, egoisticamente, estava feliz porteraquela experiência quase particular.

 

Piazzolla e sua orquestra entraram e fizeram um show como se o teatro estivesse lotado. Sentei de frente para o palco e Piazzolla tocou como se eu fosse toda a plateia do mundo. A cada música eu aplaudia e ele me olhava como se eu fosse milhões. Agradecia e continuava.

Quando as primeiras notas de "Libertango" preencheram o espaço, o arrepio foi inevitável. A precisão com que seus dedos acariciavam o bandoneón era hipnotizante. Não era apenas técnica – era pura alma traduzida em som. O instrumento parecia respirar em suas mãos, expandindo-se e contraindo-se como um organismo vivo.

Entre as músicas, Piazzola ocasionalmente falava algumas palavras, com seu espanhol portenho carregado de história. Falava como se estivesse numa sala de estar, conversando com amigos íntimos, e não num teatro semivazio em uma cidade estrangeira.

A chuva continuava lá fora. Mas dentro daquele espaço existia apenas a música, criando um universo paralelo no qual o tempo se dobrava e se expandia conforme a vontade do mestre argentino. Ao final, aplaudi de pé, seguido pelos outros gatos pingados da audiência. Ele agradeceu bizando duas vezes. Um dos biz foi “Oblivion”! O outro foi “Años de Soledad”.

A melodia melancólica de “Oblivion”, quase dolorosa em sua beleza, começou a fluir. Era como se cada nota contasse uma história de perda, de memórias que se esvaem, de amores que se vão. Paradoxalmente, enquanto a música falava de esquecimento, eu sabia que jamais esqueceria aquele momento.

O bandoneón de Piazzolla parecia chorar, rir e sussurrar segredos ao mesmo tempo. Os violinos respondiam como ecos distantes, criando camadas de emoção que se sobrepunham. Quando abri os olhos, notei que algumas pessoas na plateia choravam silenciosamente.

"Años de Soledad" veio em seguida, como um bálsamo. As notas dançavam pelo teatro vazio, ricocheteando nas paredes e voltando transformadas. Piazzolla, com os olhos semicerrados, parecia estar em transe, completamente entregue à sua criação.

Ao final do show, enquanto a plateia se dispersava lentamente, permaneci sentado, querendo prolongar aquele momento o máximo possível. Observei Piazzolla conversando com alguns músicos no palco, guardando seu bandoneón com o cuidado de quem acomoda uma criança para dormir.

Ele morreu quatro anos depois, vítima de um AVC, que o fez esquecer – ironicamente, “Oblivion”. Eu nunca me esqueci daquela noite. Que sorte!!

Hoje, sempre que ouço "Oblivion", não importa a versão; sou transportado de volta àquele teatro, àquela noite chuvosa em que o mundo lá fora pareciaterdesaparecido. Sei que a memória é frágil, que nosso cérebro constantemente reconstrói e reinterpreta o passado. Mas algumas lembranças parecem gravadas não apenas em nossos neurônios, mas em cada átomo do nosso ser.

Talvez seja isso que a música faz – cria pontes entre o presente e o passado, entre o esquecimento e a lembrança. Piazzolla, com seu gênio, conseguiu transformar o próprio conceito de oblivion – o esquecimento – em algo inesquecível. Em uma noite chuvosa, tive o privilégio de testemunhar essa alquimia.

*Texto em homenagem ao também genial Hermeto Pascoal, que partiu nesse fim de semana.

 

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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