
Pega na mentira
A fome não deixa o mendigo mentir. Já o bilionário mente para fugir do leão. Assim mantém-se o desequilíbrio universal
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Desde que Eva convenceu Adão que aquela maçã era apenas uma fruta inocente (primeira fake news da história), a mentira tem sido nossa fiel companheira. Como parasita evolutivamente bem-sucedido, adaptou-se ao hospedeiro humano, mutando de embustes primitivos para sofisticadas campanhas de desinformação digital.
Meu colega gaúcho Alexandre Schwarzbold me contou sobre o festival da mentira de Nova Bréscia, no Rio Grande do Sul, a "Capital da Mentira". O evento acontece a cada dois anos, teoricamente no primeirode abril. Nova Bréscia tem cerca de 4000 habitantes, ninguém sabe ao certo, pois todos negam a própria existência ao censo do IBGE.
O bresciense Sérgio Lorenzon sagrou-se tricampeão em 2024, após vencer em 2006 e 2021. No próximo ano,terá como adversário "oficialmente confirmado" o Trump. Nos últimos tempos, Trump tem dado show pelo mundo. Mente descaradamente ao dizer que os EUA têm déficit comercial com o Brasil, quando é o contrário.
Disse que a Ucrânia começou a guerra com a Rússia. Afirma que o carvão é limpo, que moinhos de vento causam câncer e que é honesto. E o pior, ainda tem quem acredite. O amigo do nosso Messias vem sendo treinado pelo filho do próprio. Tal pai, tal filho, sugerindo que a mentira é determinada geneticamente.
Aliás, o Messias, nosso campeão nacional, não competirá em 2026 devido a uma grave distensão no músculo adutor da língua. Por "recomendação" judicialterá que ficar de repouso vocal e digital por um bom tempo.
Os Messias deixaram claro o real significado para eles do lema "Deus, Pátria e Família": Em nome de Deus se mata, em nome da Pátria se trai e em nome da família e do poder, foda-se Deus e Pátria.
Nossos ancestrais mentiam por sobrevivência. Já nós elevamos a mentira à arte performática. Políticos mentem com naturalidade. Celebridades mentem sobre procedimentos estéticos enquanto seus rostos permanecem congelados. E todos fingimos acreditar.
A história é, em parte, um compêndio de mentiras bem-sucedidas. Troia caiu por causa de um cavalo mentiroso. Impérios foram construídos sobre promessas de grandeza nunca materializadas. "Este território é nosso porque um documento antigo (convenientemente perdido) assim o diz." E milhões morreram em guerras baseadas em narrativas fictícias.
A mentira é democrática - disponível para todos. A fome não deixa o mendigo mentir. Já o bilionário mente para fugir do leão. Assim mantém-se o desequilíbrio universal. Na era digital, a mentira ganhou superpoderes. Viaja à velocidade da luz, multiplicando-se como vírus sem cura. As fake news infestam redes sociais e smartphones. Vacinas causam autismo? Claro! Terra plana? Obviamente! Beber desinfetante cura doenças? Por que não? A ciência, que passou séculos separando fatos de ficção, virou "mais uma opinião".
Como médico, observo este fenômeno com o fascínio horrorizado de quem estuda uma superbactéria resistente. As fake news na saúde são perversas – bactérias e vírus ainda não aprenderam a mentir. Na pandemia, a desinformação matou tão eficientemente quanto o vírus. "Não use máscara!", "Tome remédio para lombriga!". A mentira vestiu-se de ciência enquanto cientistas tentavam desesperadamente ser ouvidos.
Desenvolvemos alergia coletiva à verdade. Ela causa desconforto. A mentira é macia, confortável, feita sob medida para nossas crenças. Por que escolher a realidade quando podemos nos aconchegar em fantasias? O paradoxo: quanto mais ferramentas para verificar fatos, menos interesse em fazê-lo. Compartilhamos primeiro, questionamos depois (ou nunca).
Na saúde pública, as consequências são trágicas e previsíveis. Movimentos antivacina ressurgem enquanto doenças erradicadas voltam. Tratamentos sem eficácia são celebrados enquanto evidências científicas são vistas com desconfiança. Como se decidíssemos que a Idade Média tinha razão e sanguessugas são a resposta para todos os males.
A mentira digital é uma bactéria resistente ao antibiótico da razão. Espalha-se pelo WhatsApp, contamina o Facebook, reproduz-se no TikTok. Sem quarentena eficaz. Talvez a mentira seja parte intrínseca da condição humana, como ficção e arte - uma forma de tornar a realidade palatável. O problema é confundir a fábula com o manual de instruções.
Como diria um poeta mentiroso: "A verdade é uma mentira que ainda não aprendeu a voar." E continuamos construindo asas para nossas falsidades, enquanto a verdade permanece presa ao solo da realidade.
No final, a maior mentira é acreditarmos que somos racionais. Somos contadores de histórias, sacrificamos a precisão no altar da boa narrativa. E que narrativa mais sedutora que aquela confirmando o que já pensávamos?
Enquanto a desinformação marcha pela saúde pública, apreciemos a ironia: morremos por mentiras que escolhemos acreditar, enquanto a verdade que poderia nos salvar espera, ignorada como um bom conselho médico que optamos por descartar.
Por fim, não esqueçam do festival de Nova Bréscia em 2026. Em ano de eleição, temos mentirosos profissionais em cada esquina deste abençoado país - uma safra ‘premium’, que faria Pinóquio parecer um mero aprendiz com problemas nasais. Com a presença “confirmada” do Trump, será, mais que nunca, uma superfesta da mentira, um verdadeiro carnaval da falsidade, cuja verdade será fantasiada com tantas camadas que nem sua própria mãe a reconheceria.
*Texto em homenagem ao nosso eterno Tremendão, que nos deixou há três anos por uma sepse de foco cutâneo.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.