
África
E o mundo se esqueceu de que nasceu na África. Berço de todos nós. Terra mãe que alimentou nossos primeiros passos
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A África sou eu, você e todos nós! Saímos daqui e ganhamos o mundo. Fomos buscar o futuro como exploradores de planetas impossíveis. Viramos europeus, asiáticos e americanos de toda cor e costumes. Nos diferenciamos de nós mesmos.
Quase não nos reconhecemos quando olhamos no espelho. Somos os mesmos. Basta olhar. Basta ver a aridez do solo. A flor que nasce esplendorosa do cacto. A árvore seca que contrasta com o céu infinitamente azul. A voracidade do leão que devora sua presa. Somos nós! África pura.
Diferentes fenótipos no mesmo genótipo. Ferozes e mansos animais. Predadores e presas da ilusão passageira.
Sim, somos todos África, mesmo que não nos tenham contado. Ou melhor, mal-educados para não nos vermos os mesmos. A ambição cegou e não nos permitiu enxergar um palmo à frente do próprio nariz.
Para onde foi o homem que mora no homem?! Foi correr mundo para fugir do mundo. Foi ser outra gente para não enxergar gente e esquecer o próprio rastro.
Quem foi, foi. Mas ensinou seus filhos a voltarem para buscar o pedaço da África que seus pais deixaram para trás. Escravos de si mesmos, levaram o ouro mais precioso: seus irmãos. Assim nasceu a África no mundo.
E o mundo se esqueceu de que nasceu na África. Berço de todos nós. Terra mãe que alimentou nossos primeiros passos e viu seus descendentes voltarem com navios, canhões e laços, não para abraçar, mas para arrancar suas entranhas.
Arrancaram o marfim dos elefantes. Arrancaram os diamantes das montanhas, o ouro das profundezas, o petróleo das veias da terra. Mas, pior, arrancaram homens e mulheres de suas raízes, transformando-os em mercadoria, em números, em dor, injustiça e sofrimento.
E depois de tudo extraído, o que deixaram? Fronteiras artificiais. Línguas estrangeiras. Religiões importadas. Governos fantoche. Miséria planejada. Deixaram a fome, as doenças e as guerras intermináveis.
O baobá milenar testemunhou tudo. Suas raízes profundas guardam memórias que os livros de história preferem esquecer. O tambor ainda ecoa nas savanas, contando histórias que bibliotecas coloniais não preservaram. A África não é um continente de silêncio, mas de vozes que foram sistematicamente abafadas.
África e pobreza não combinam. A África foi empobrecida. Suas riquezas fluem para fora em navios cargueiros, em contas bancárias offshore, em acordos comerciais injustos. O continente-mãe transformado na imagem da pobreza por mãos estrangeiras habilidosas na arte do saque.
E agora, quando a febre amarela, o ebola, a malária, o Mpox, e tantas outras doenças se espalham, o mundo se assusta. Como se os vírus respeitassem fronteiras, passaportes ou contas bancárias.
Não existe um mundo de primeira e um outro de terceira categoria. Existe um único mundo, interconectado, interdependente. A dor da África é a dor do planeta. A ferida aberta no coração do continente sangra em todos os oceanos. Quando uma criança morre de fome em Mali, uma estrela se apaga no céu de Nova York, mesmo que ninguém perceba.
A verdadeira pandemia é a indiferença. É o olhar que se desvia. É a consciência anestesiada. É a história que se repete em ciclos de exploração cada vez mais sofisticados. Ontem eram os mosquetes, hoje são as dívidas impagáveis.
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Mas a África resiste e nos ensina a resistir. Como o baobá que sobrevive às secas mais severas. Como o rinoceronte que, mesmo caçado até quase a extinção, ainda corre pelas planícies. Como as crianças que, com barrigas vazias, ainda encontram força para sorrir, sonhar e correr atrás de uma bola.
Somos todos África, porque compartilhamos um destino comum. Quando o último rio africano for contaminado, os rios do mundo todo sentirão. Quando o último pedaço de terra fértil for transformado em deserto, a fome visitará todas as mesas. Um mundo único exige uma nova consciência. Exige entender que as doenças não são apenas falhas biológicas, mas manifestações de falhas morais e políticas muito mais profundas.
A África não pede caridade. Pede justiça. Não pede migalhas, mas o fim do banquete construído com seus recursos. Não pede compaixão momentânea, mas uma nova ordem mundial baseada na equidade e no respeito.
Quando aprendermos a ver a África não como um "outro" distante, mas como parte integrante de nossos próprios genes, talvez então possamos começar a curar as feridas de séculos. Quando entendermos que a pobreza não é natural, mas fabricada, talvez então possamos desmantelar as máquinas que a produzem.
África, continente do sol que nunca se põe, do tempo que se mede em gerações; não em horas. África de Mandela e Lumumba, de rainhas guerreiras, de nossos novos amigos Collins e Thomas, que nos guiaram savana adentro nos mostrando os rastros da África no mundo. África que ainda espera o dia em que será vista não como um problema a ser resolvido, mas como uma promessa a ser cumprida.
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Somos todos África. Quando a África finalmente respirar livre, o mundo inteiro poderá colocar a cabeça no travesseiro e dormir em paz. Até lá, só com muito sonífero.
*Texto dedicado ao Collins e Thomas
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.