A solidão não é um problema que afeta apenas idosos. Entre moradores de rua, a morte solitária é uma realidade frequente. Sem acesso a cuidados médicos adequados, sem vínculos familiares e socialmente isolados, esses indivíduos são especialmente vulneráveis -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)

A solidão não é um problema que afeta apenas idosos. Entre moradores de rua, a morte solitária é uma realidade frequente. Sem acesso a cuidados médicos adequados, sem vínculos familiares e socialmente isolados, esses indivíduos são especialmente vulneráveis

crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press

 

Viver é um ato solitário desde sempre. Por mais que estejamos rodeados de pessoas, amigos, familiares e colegas, existe um espaço dentro de nós que é intransponível e pessoal. Um espaço em que a solidão é uma constante, um companheiro mudo que, mesmo em meio à multidão, nos faz lembrar que, no fundo, estamos sozinhos. Em algumas partes do mundo, como no Japão, essa solidão se manifesta de forma trágica, especialmente entre idosos, no fenômeno conhecido como kodokushi, ou "morte solitária".

 

 

Essa realidade me remete à minha infância em Ibiá, onde a morte de Zé Bem, morador de rua conhecido por todos, me marcou profundamente. Ele foi encontrado morto em seu casebre, dias depois de falecer. Minha mãe, que funcionava como uma assistente social informal na cidade, sempre se preocupava com moradores de rua que passavam pela nossa casa para uma refeição ou lanche. Quando alguém ficava ausente por alguns dias, ela dava o alarme, e logo alguém era enviado para procurar. Foi assim que encontraram Zé Bem.

 


Sua morte solitária e o impacto que causou na comunidade são reflexo em menor escala do que acontece no Japão. Lá, um país que se orgulha de sua longevidade, o envelhecimento populacional está levando a uma crise social silenciosa. As estruturas familiares tradicionais, que antes garantiam o cuidado dos idosos, estão se fragmentando. As gerações mais jovens, buscando trabalho e oportunidades nas grandes cidades, deixam para trás pais e avós, que acabam vivendo sozinhos. Em 2020, cerca de 7,38 milhões de idosos viviam sozinhos no Japão, um número que pode chegar a 11 milhões até 2050.


O kodokushi se tornou um símbolo dessa crise. Em Tokiwadaira, um dos maiores conjuntos habitacionais públicos do Japão, a solidão dos idosos é fato. A cidade de Matsudo foi a primeira a sentir o impacto dessa realidade de forma aguda, quando o corpo de um homem foi encontrado em seu apartamento três anos após sua morte. Durante todo esse tempo, seu aluguel e contas foram pagos automaticamente, e sua ausência só foi notada quando suas economias acabaram.


O governo japonês tem tentado lidar com essa situação usando tecnologia para monitorar a atividade dos idosos. Sensores instalados nos apartamentos detectam a falta de movimento, e patrulhas voluntárias verificam sinais de abandono. Apesar desses esforços, cerca de 68 mil pessoas devem morrer sozinhas em 2024, um número alarmante se comparado aos 27 mil casos registrados em 2011.


No Brasil, embora o fenômeno não seja tão conhecido quanto no Japão, mudanças demográficas e sociais indicam que a morte solitária pode se tornar uma realidade aqui também. O rápido envelhecimento da população, acompanhado de transformações profundas nas estruturas familiares, tem levado a um aumento no número de pessoas vivendo sozinhas. Em 2010, cerca de 12,1% dos domicílios eram ocupados por apenas uma pessoa, e esse número só cresce.


A solidão não é um problema que afeta apenas idosos. Entre moradores de rua, a morte solitária é uma realidade frequente. Sem acesso a cuidados médicos adequados, sem vínculos familiares e socialmente isolados, esses indivíduos são especialmente vulneráveis. A população em situação de rua no Brasil tem crescido, impulsionada por crises econômicas, desemprego e falta de políticas públicas eficazes. Estima-se que mais de 222 mil pessoas vivam nessas condições no país.


A morte desses indivíduos, muitas vezes, passa despercebida. Corpos são encontrados dias depois por transeuntes ou autoridades, sem qualquer notificação ou registro adequado. Mesmo em morte, muitos permanecem anônimos, sem que ninguém reclame seus corpos ou organize seus funerais. É a forma mais extrema de isolamento, cuja exclusão social e a falta de recursos básicos levam a um ciclo de pobreza e morte prematura.


A solidão, seja entre idosos ou moradores de rua, é um risco significativo para a saúde física e mental. A literatura científica documenta como o isolamento social pode levar à depressão, ansiedade, declínio cognitivo e mortalidade precoce. No Japão, a morte solitária entre idosos está diretamente ligada ao envelhecimento populacional e à fragmentação das famílias. No Brasil, a situação dos moradores de rua é uma forma mais extrema de isolamento.


Enquanto o Japão tem investido em soluções tecnológicas para monitorar e cuidar da população idosa, no Brasil a resposta é mais complexa. Aqui, há uma forte tradição de solidariedade comunitária, que pode ser mobilizada para ajudar a mitigar os riscos associados à morte solitária. Redes de vizinhança solidária, programas de visitas domiciliares e políticas públicas focadas na inclusão social são cruciais para enfrentar esse problema.


No entanto, é preciso mais. É necessário cultivar uma cultura de cuidado e apoio mútuo, garantindo que todos, independentemente de idade ou condição social, tenham oportunidade de viver e morrer com dignidade. Precisamos de uma sociedade em que o cuidado com o outro seja visto como responsabilidade coletiva, na qual ninguém seja esquecido ou deixado para trás.


Em tempos de eleição, quando se discutem as prioridades nacionais, é vital que se dê atenção a esses temas. Que possamos aprender com as lições do Japão e olhar para as nossas vulnerabilidades, garantindo que a morte solitária não se torne comum no Brasil. É um chamado à ação, um lembrete de que, no fundo, a vida é solitária, mas não precisa ser vivida - ou findada - na solidão.