"A pandemia de Covid-19 foi uma das maiores crises sanitárias já enfrentadas pela humanidade

crédito: Michael DANTAS / AFP

 

Hoje é um dia muito importante para toda a comunidade médica do país e também para a população brasileira. Começamos as eleições para eleger os novos delegados do Conselho Federal de Medicina (CFM). Trata-se de um órgão fundamental que regulamenta a profissão médica no país e influencia as políticas de saúde a serem implementadas pelo governo.


Nos últimos 4 anos, a polarização política do país, infelizmente, afetou em cheio o CFM, com graves consequências para a saúde da nossa população. A contaminação política do órgão durante o período mais crítico da pandemia acabou por comprometer o caráter ético-regulatório e científico do órgão e macular a já combalida imagem de toda a categoria médica perante a população brasileira.

 


No sentido de esclarecer a importância dessas eleições, vou replicar aqui o excelente texto escrito pelos colegas Tazio Vanni e Julival Fagundes Ribeiro de Brasília e Rodrigo Caprio Leite de Castro da UFRGS.

 


“A pandemia de Covid-19 foi uma das maiores crises sanitárias já enfrentadas pela humanidade. Nesse momento, foi alarmante a magnitude em que se observaram médicos recomendando tratamentos sem eficácia ou segurança, bem como disseminando informações falsas sobre vacinas. No Brasil, a CPI da Covid-19 foi importante para responsabilizar alguns indivíduos que vinham promovendo essas práticas. Entretanto, pouco se discutiu sobre as condições que geraram a “tempestade perfeita” que foi a pandemia.


Apesar de a pandemia ter notabilizado práticas de ética e base científica questionáveis, antes dela já se observavam médicos recomendando procedimentos estéticos sem questionar sua segurança, promovendo tratamentos sem estudos clínicos, expondo imagens de pacientes sem autorização, favorecendo medicamentos da indústria farmacêutica em troca de benefícios, etc. Se a frequência dessas práticas era grande antes da pandemia, com a crise da Covid-19 elas convergiram em um tsunami e, a fiscalização pelos conselhos profissionais e autoridades sanitárias, não foi capaz de impedir danos no curto e longo prazo.


Desconsiderando as etapas necessárias para o desenvolvimento de novos medicamentos, alguns pretensos pesquisadores buscaram caminhos perigosos. Um estudo francês ganhou uma notoriedade perversa no início da pandemia ao fazer extrapolações pouco realistas sobre o efeito da hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19. Influenciados por ideais políticos e sob a égide da “autonomia médica”, surgiram facções que promoveram o tratamento precoce com hidroxicloroquina, inclusive em crianças e gestantes. Infelizmente, ainda hoje não temos estimativas oficiais do número de pessoas que morreram devido a tratamentos ineficazes e inseguros para COVID-19.


No longo prazo, a pandemia também fraturou pilares importantes da saúde pública. O Programa Nacional de Imunizações foi um dos pilares que mais sofreu com a infodemia de fake news. É difícil estimar o número de pessoas que morreram em decorrência de não terem se vacinado contra a COVID-19 por convicções construídas a partir dessas inverdades, mas provavelmente não foram poucas. Também se investiga a hipótese de que a campanha contra as vacinas de covid-19 tenha afetado a credibilidade de outras vacinas de forma duradoura.


Além do profundo impacto na saúde, a pandemia teve grande repercussão social que será sentida por muitos anos, o que os pesquisadores da Academia Britânica têm chamado de “década do Covid-19”. Durante a pandemia, a tecnologia contribuiu para que as relações sociais sobrevivessem à distância, mas também fortaleceu o hábito de compartilhar informações sem a devida reflexão, o que ainda permeia as relações sociais. Tanto as políticas públicas equivocadas quanto o aluvião de fake news minaram a confiança nas instituições governamentais, que até hoje não foi restabelecida.


Entramos nesta década com a pandemia nos lembrando quão frágil pode ser o progresso. De acordo com as Estatísticas de Saúde Mundial 2024 da OMS, a expectativa de vida nas Américas caiu em quase 3 anos entre 2019 e 2021. Se não fosse pela ciência e a ética, que possibilitaram o desenvolvimento de tratamentos e vacinas seguras e eficazes, o retrocesso seria ainda maior. Não é por acaso que Hipócrates, ao introduzir o raciocínio lógico à experiência clínica, criou a base da medicina moderna. Entretanto, atualmente, na formação dos profissionais da área da saúde, faltam espaços que promovam o raciocínio científico e a ética. Em situações de grande incerteza, como a que observamos no início da pandemia, o raciocínio erístico (ou seja, inferências egoístas para gratificações hedônicas) é uma forma instintiva de reagir, mas raramente constrói soluções efetivas para uma crise.


Se buscamos uma sociedade mentalmente sadia, precisamos lidar com as armadilhas dopaminérgicas das mídias sociais e os comportamentos aberrantes que promovem. Como Homo sapiens, devemos ser capazes de ressignificar as gratificações contemporâneas e coibir práticas antiéticas. É estratégico fortalecer associações e conselhos profissionais, bem como garantir sua atuação junto às instituições governamentais para protegê-las de devaneios políticos desastrosos. Mais importante do que prever quando será a próxima pandemia, é aprender com o que aconteceu.