Catástrofes, em geral, são mais obra do descaso do que do acaso. Negligência custa caro e mata. Mas tem conserto -  (crédito: Getty Images)

Catástrofes, em geral, são mais obra do descaso do que do acaso. Negligência custa caro e mata. Mas tem conserto

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Joaquim, meu sobrinho de 3 anos, viu a Lua pela primeira vez num telescópio. Não teve dúvida, era um pão de queijo. Alguém tem dúvida de que ele é mineiro?! Genética do prazer influenciando desde cedo o jeito de ver o mundo. Neste caso, a Lua.


Uma senhora desabrigada ao ser entrevistada revelou do que mais sentia saudade da sua casa: do churrasco! Não era do seu guarda-roupas, da sua privacidade e dos guardados que foram embora com as águas. Alguém tem dúvida de que ela é gaúcha?!

 


Olhar mágico para a vida nos brinda com símbolos nossos, profundamente nossos. A jarra não é uma jarra qualquer. É a jarra da minha infância que abrigou antúrios sobre uma cômoda que escondia chocolates e biscoitos os quais eu não alcançava. Certo dia, tentando garimpar as guloseimas ocultas, derrubei a jarra que quebrou a beirada. Nada que a deixasse desfigurada. Levei um beliscão fininho que só minha mãe sabia dar. Minha mãe se foi e a jarra ficou, assim como a mensagem do beliscão fininho.

 


O pão de queijo, o churrasco e a jarra não são o que parecem ser. São outra coisa que só nós sabemos ser.

 

 


Quando as águas do Guaíba começaram a baixar, havia um sofá engastalhado nos fios de alta tensão. Como ele foi parar ali?! Lugar inimaginável para se ver um sofá. No instante seguinte, a pergunta já era outra. Quem será que um dia nesse sofá cochilou em frente a uma TV, assistindo ao drama da seca na Amazônia? Quase tão impossível e improvável quanto o sofá sobre um poste de luz. Sem luz.

 


Botos mortos na areia e sofás à deriva, no Sul, querem nos fazer enxergar algo além daquilo que nossos olhos espantados não conseguiram perceber. O mundo mudou.

 


Chuva já não é chuva e água nos ameaça tanto quanto o fogo. O mundo mudou.

 


Para sobrevivermos agora, já não basta vermos apenas o óbvio. Agora, é hora de voltarmos a ter olhos de criança e vermos a lua como um delicioso pão de queijo quentinho. Perceberam o aroma?! Se não sentiram, coloquem uma fornada para assar e sentirão a manifestação imediata de suas glândulas parótidas inundando de saliva bocas e sentidos mil.

 

 


Para ter olhos que nos façam aguçar o paladar e perceber o real sentido das coisas, é preciso acordar os ouvidos para entender melhor o terreno que agora pisamos. Como disse Manoel de Barros em “Matéria de Poesia”: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia”. A poesia é que vem salvando o mundo desde sempre. Continuará salvando, apesar dos deficientes de sensibilidade.

 


Reconstruir o Sul é nos reinventarmos. Hora de recolher o lixo, sabendo que lixo é esse que estamos catando, e que água é essa que hoje nos reivindica o seu lugar de origem.

 


Catástrofes, em geral, são mais obra do descaso do que do acaso. Negligência custa caro e mata. Mas tem conserto.

 


Na metade do século passado, em “Olhai os Lírios do Campo”, Veríssimo nos convida a ver lírios onde não existem lírios. Refletir sobre o materialismo versus espiritualidade, amor e sacrifício, crítica social e redenção pessoal permeiam uma obra repleta de recados para os que têm olhos de ver e enxergar.

 


Assim como, Eugênio, personagem do livro, aprende a valorizar o que realmente importa na vida, as inundações no Rio Grande do Sul nos lembram a fragilidade de nossos bens materiais e da importância de cuidarmos uns dos outros. São momentos para refletir sobre prioridades e reforçar a importância da comunidade, da solidariedade e do apoio mútuo.

 


No mesmo sentido, Mário Quintana chama atenção para esses mesmos valores em versos de extrema sensibilidade e pedagógicos para o momento atual.

 


"São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida."

 

A lua (pão de queijo do Joaquim) "esquecida" no céu é a indiferença da natureza frente às tragédias humanas, ressaltando nossa fragilidade. Nas estrofes seguintes, ressalta a transitoriedade da vida, a esperança, a resiliência, a solidariedade e a união.

 

"Tudo é efêmero: o que está e o que não está
Tudo o que ainda não é e o que já foi
É como um breve traço, que se apaga depois
Na superfície do imenso mar."

 

"Mas é preciso viver, como quem sabe
Que um dia, o que passou voltará
Como um rio que sempre ao mar deságua
E que no seio da terra, renascerá."

 

"Os homens de boa vontade se reúnem
Em torno à grande mesa dos seus sonhos
E das dores que em silêncio a todos consomem
Fazem-se mais fortes, em caminhos risonhos."

 

Esse é o Brasil gaúcho e poético que nos dá orgulho, nos ensina e abraça.