
O machismo mata todos os dias
O machismo é assim, vai matando a gente por dentro, fazendo com que duvidemos de nós mesmas e duvidemos umas das outras
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Nem sempre a gente volta com o que foi buscar. Outro dia, numa sessão de análise, minha paciente disse que ser mãe é abrir mão da própria vida. Hoje, as mães se permitem dizer isso, a gente se permite não romantizar a maternidade que parece cada vez mais solitária e mais cheia de cobranças externas e autocobrança. A gente sonhou com o pacote “mãe do ano” e voltou com o peso da sobrecarga de quem tenta dividir os cuidados com os filhos, com os cuidados com a casa, uma vida profissional saudável e um saldo bancário que permita pagar o básico.
Fomos incentivadas a trabalhar fora, ter o nosso dinheiro, mas não incentivamos os homens a estarem presentes dentro de casa, dividindo as tarefas e os cuidados. A autonomia financeira veio junto com a sobrecarga e, em algum lugar no meio do caminho, temos mães olhando para o nada, vivendo o mesmo dia todos os dias, sem perspectiva de melhora, e sem possibilidade de parar, porque se parar não vai ter ninguém ali para fazer o que essa mãe faz.
Ao longo de uma semana eu atendo aproximadamente 20 mães, casadas, divorciadas e viúvas. Todas com mais de 40 anos. Algumas em relacionamentos abusivos, outras já separadas dos seus abusadores. Muitas são mães de crianças atípicas que precisaram deixar o trabalho formal para serem cuidadoras, e foram se tornando invisíveis junto com seus filhos à medida que eles foram crescendo. Falamos muito em inclusão, mas essa caminha a passos lentos. Mãe de criança excluída, excluída é. Não encontra uma rede de apoio e geralmente é abandonada pelo genitor dos filhos, abandono que também é patrimonial, porque a pensão, quando existe, vai sendo reduzida ao longo dos anos.
Quem dera se as pessoas soubessem o quanto custou à mãe um sorriso do filho. Noites insones, batalhas judiciais por uma pensão irrisória, violência psicológica, reuniões e mais reuniões na escola. Isso tudo exaure, mas tem mais. Mãe que dá o que não tem e ainda precisa provar. Ainda precisa se submeter ao julgamento externo e ao autojulgamento, que às vezes é ainda mais cruel.
Preparo as pacientes que sofrem violência doméstica, especialmente a violência psicológica, para que elas não duvidem de si mesmas, para que fiquem seguras quando forem buscar uma delegacia, ou pedir ajuda para alguém da família, porque a reação do outro é de sempre duvidar da palavra da mulher.
“Bebel, quando cheguei na delegacia da mulher e falei em violência psicológica, ninguém deu bola, parece que, se a gente não chegar lá com um olho roxo, não sofreu violência.” O machismo é assim, vai matando a gente por dentro, fazendo com que duvidemos de nós mesmas e duvidemos umas das outras.
A gente passa pela violência e ainda precisa ficar provando para todo mundo, o tempo todo, que foi violência.
E enquanto as pessoas duvidam, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Brasil mostram que uma mulher é assassinada a cada seis horas e, a cada um minuto e meio, é registrado um caso de violência física, sexual ou moral. E nas últimas semanas nós pudemos ver mulheres sendo socadas por seus companheiros até terem seus rostos destruídos. Vimos uma mãe morrer com golpes de marreta na frente das filhas. Uma mulher sendo degolada pelo ex. São fatos que me embrulham o estômago só de lembrar.
Isso cansa. Isso me cansa. Tem dia que eu só quero mergulhar nas profundezas de um nada absoluto. Dias que eu não quero pensar, nem ver gente, nem fazer nada, tamanha a exaustão da minha mente tentando imaginar se existe solução para esse problema, e quanto tempo levaria para que tudo isso mudasse. Só sei de uma coisa, se a taxa de natalidade está caindo e, se cada dia mais mulheres optam pelo celibato, não é por acaso. Homens reclamam do feminismo, mas a verdade é que feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.