
O Judiciário e as desigualdades que as mulheres carregam
Não podemos aceitar que decisões judiciais continuem sendo tomadas a partir de estereótipos e preconceitos
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A cantora Nara Leão, falecida em 1989, já dizia: “A mulher sempre faz concessões para o homem. Acaba largando um pouco a sua carreira, para tentar que o casamento funcione, que os filhos tomem banho, escovem os dentes, estudem”. As mulheres ainda vivem essa realidade marcada por dupla jornada, salários mais baixos, violências específicas, sobrecarga, invisibilidade do trabalho doméstico, cobranças sociais e estéticas desproporcionais, pouca representatividade política etc., o que chamamos de desigualdade de gêneros, um problema estrutural que afeta diversas áreas da vida, com mulheres frequentemente em desvantagem em relação aos homens.
Em função de tudo isso, existe uma resolução, a Resolução nº 492/2023 do CNJ, que prevê a obrigatoriedade da aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero nas decisões judiciais, estabelecendo a capacitação de magistrados e magistradas em direitos humanos, gênero, raça e etnia, com uma abordagem interseccional. A resolução cria também o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.
Tal protocolo prevê que, olhando para a realidade, juizes e juizas devem considerar em suas decisões a desigualdade entre os gêneros. Quando um juiz ou juíza toma uma decisão partindo do princípio de que todas as pessoas têm igualdade de condições, ele ou ela ignora a realidade, reforçando as injustiças e simulando uma neutralidade que não existe.
Os homens podem seguir com sua vida profissional, mesmo quando têm filhos porque, culturalmente, o trabalho de cuidado é obrigação feminina. Embora mulheres também saiam para trabalhar, quem enfrenta a dupla jornada são apenas elas, cuidando dos filhos e da casa. A mulher precisa se defender com menos recursos, menos tempo e menos apoio emocional. Muitas vezes, sem autonomia financeira ou mesmo acesso a provas. O que não quer dizer que o homem seja culpado por ser homem, mas significa que os juízes precisam avaliar os casos de acordo com o contexto.
Casos de falsas acusações existem, mas são raros. É mais comum que mulheres se calem por medo, por vergonha ou sejam caladas com violência e feminicídio. E a tentativa de silenciamento também vem das próprias mulheres. As deputadas Chris Tonietto (PL/RJ) e Bia Kicis (PL/DF) aprovaram, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo - PDL 89/2023, que basicamente visa anular a resolução.
As deputadas alegam que o que está em jogo não é “justiça de gênero”, e sim o fim da imparcialidade no Judiciário. Mas o Judiciário nunca foi imparcial; sempre esteve do lado dos homens. Nosso Judiciário é machista, tendo em vista o patriarcado enraizado na nossa sociedade. Precisamos buscar cada vez mais leis e políticas públicas para trazer a igualdade para as mulheres, especialmente para as mães que precisam do Judiciário para cobrar direitos básicos.
Diferentemente do alegado pelas deputadas, essa não é uma discussão sobre partidos, ideologias ou religião. O protocolo não cria direitos novos, não privilegia mulheres e não altera nenhuma lei. Ele apenas orienta que o (a) juiz (a) leve em conta o contexto real da parte envolvida no processo, ou seja, o mínimo para que a aplicação da justiça seja, de fato, justa.
A tentativa de derrubar essa resolução é muito séria! E mais preocupante é que projetos como esse não precisam da sanção do presidente da República, ou seja, se forem aprovados no Congresso, entram em vigor automaticamente. Precisamos nos mobilizar para que o PDL 89/2023 não avance. Não podemos aceitar que decisões judiciais continuem sendo tomadas a partir de estereótipos e preconceitos. O Judiciário precisa enxergar as mulheres com a consciência das desigualdades que elas carregam, em especial aquelas mais vulneráveis.
Alguns dirão que tudo isso é vitimismo. Ao rotular as reclamações como tal, os privilegiados evitam confrontar as próprias posições de poder e as injustiças inerentes ao sistema que os beneficia. Mulheres que agem contra as próprias mulheres são como baratas defendendo inseticida.
* (Texto baseado no conteúdo de @dra.mirianeferreira e @aliancapelasmulheres)
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.