É possível viver com mais generosidade nos colocando no lugar do outro com mais frequência -  (crédito: Freepik)

É possível viver com mais generosidade nos colocando no lugar do outro com mais frequência

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Texto de Marcela Bracarense (in memorian)


Tenho um filho com alergia alimentar múltipla e cuido de sua alimentação pessoalmente. Consumimos pouquíssimos industrializados e me dedico a adaptar qualquer receita para que ele desfrute da mesma alegria que qualquer criança, nos ambientes sociais que envolvem alimentar-se junto. Se eu disser que é tranquilo, estarei mentindo. É trabalhoso, mas possível e gratificante como mãe.


Entendo que somos todos seres humanos, nossa condição humana, implicitamente, prevê erros e acertos. O conhecimento sobre o que há além dos nossos lares contribui para uma postura mais ética, generosa e inclusiva em todos os ambientes. Cada um carregando o seu tijolinho para construir a sociedade respeitosa e solidária que queremos para nossos filhos.

 

 

 

Uma vez fui procurada pela mãe de uma coleguinha de sala do meu filho. Ela avisava que resolveu cantar parabéns, de última hora, para sua filha, na escola, no dia seguinte, e estava preocupada pelas restrições alimentares do meu filho. Senti nessa conversa todo o carinho dessa família conosco e prontamente me coloquei a fazer o "kit festa" dele, com minhas receitas e os alimentos permitidos para desfrutar desse momento especial com os amiguinhos!


 

Em outro momento, recebi a ligação da coordenadora da escola, informando que uma família levou brigadeiros para toda a turma, como despedida no último dia do semestre. Agradeci a atenção de terem retido os doces na coordenação até que resolvessem comigo a situação do meu filho. Interrompi o que estava fazendo, adaptei meus planos, e me coloquei a preparar brigadeiros especiais para ele. Entrega feita na escola, problema sanado. 


Retornei para minhas atividades, inclusive de preparar o almoço dele, já que, mesmo atrasada, não podemos recorrer a um self-service ou industrializados que adiantam a vida das donas de casa em emergências. Não é um fardo realizar essas tarefas, descrevo apenas para terem uma dimensão de como um descuido provoca um "efeito borboleta" em famílias com restrição alimentar.


Fomos para a consulta com a fonoaudióloga e imaginem a minha surpresa - na sala de espera, uma família entra com um bolo coberto de chocolate e outros itens para uma festinha surpresa de uma criança com seus coleguinhas da clínica. Fiquei paralisada por alguns segundos, sem acreditar na situação que nos encontrávamos. Confirmei com a secretária e realmente haveria os parabéns com o bolinho. Eu tentava recordar se, porventura, havia, justamente nesse dia, algum bolinho dentro da mochila do meu filho, mas precisava agir rápido para evitar que ele passasse por aquele constrangimento e se frustrasse desnecessariamente.


Certamente, haverá aquelas que defenderão que ele precisa lidar com a diferença e com a frustração de apenas observar, sem desfrutar do que se come no momento. Para essas, digo que ele lida com a diferença todos os dias, durante todo o tempo. Desde o café da manhã, que não tem o mesmo pão do papai e da mamãe - mas tem o pão dele - passando pelo lanche da escola que recebe de casa - com as adaptações, mas resguardando semelhanças para vivenciar frutas e sucos com a turma - até nos almoços cotidianos ou em eventos, a marmita com o "kit festa", que é nossa rotina em qualquer comemoração. 


Ele sabe e lida todo o tempo com o fato de sua alimentação ser diferente. O que considero inadmissível é esperar que uma criança de 3 anos conseguisse compreender que, infelizmente, por ser diferente, não tem nada para ele no momento e isso deve ser vivido como natural, parte das frustrações da vida.


É possível viver com mais generosidade nos colocando no lugar do outro com mais frequência. Entendo as boas intenções das duas famílias, reconheço como surpresas felizes colorem nossa vida e até admiro as iniciativas de proporcionar algo simples, mas que toca o coração de todos.


Minha proposta se revela agora: tocar agradavelmente o coração de todos. Porque a surpresa da bandeja de brigadeiros quase se tornou uma surpresa desagradável para o meu filho. E aquele bolo com os parabéns tão espontâneo e improvisado na sala de espera também. Meu filho é alérgico alimentar, mas poderia ser diabético ou ter tantas outras restrições que inviabilizam sua inclusão nessas iniciativas "surpresa".


Vamos refletir para quem é a surpresa nos três casos? Para as crianças. Para criar aquele ambiente gostoso de alegria por um "agradável imprevisto". Seria possível informar discretamente aos adultos envolvidos para que estivessem preparados e tomassem alguma providência necessária? Sim.


Se esforce para tornar a surpresa agradável a todos antes de enviar uma "surpresa" para a escola, clínica, play, praça, parquinho, natação etc. Procure saber se há crianças que precisam de cuidados especiais. É algo tão simples, tão banal e possível com bate papo informal. Mas, acima de tudo, é a tão discutida inclusão exercitada em cada família, e uma forma da mãe dar o seu exemplo.