Clean Girl só para brancas? Trends de maquiaqem não promovem a diversidade
Cercadas de tendências com viés racista, mulheres não-brancas mostram versatilidade ao impulsionar estéticas como Latina Girl, Sade Girl e Afropaty
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SIGA NOPor: Flávia Santos e Gabi Coelho
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A tendência Clean Girl promove um visual natural, com pele bem cuidada e cabelos alinhados, mas frequentemente exclui mulheres não-brancas, ignorando a diversidade de belezas.
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Com pouca representatividade, as criadoras de conteúdo não-brancas enfrentam ainda o racismo do algoritmo, que invisibiliza e estigmatiza mulheres negras.
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Influenciadoras negras criam outras tendências estéticas, que celebram a diversidade de estilos e penteados, com referências culturais próprias e inclusivas.
Se você pesquisar o termo Clean Girl na internet, provavelmente vai encontrar fotos de mulheres brancas, magras e de cabelos lisos. A expressão da língua inglesa, que traduzida ao pé da letra significa ‘garota limpa’, promove a estética ‘acordei assim’. Ela é caracterizada por um visual minimalista, paleta de cores neutras, escolha por peças de alfaiataria, cabelos alinhados e sem frizz. Teoricamente, a maquiagem não é o foco principal; o skincare, ou cuidado com a pele, sim. A ideia é realçar o brilho natural da pele.
Embora a tendência alegue valorizar a simplicidade, na prática, ela exclui a diversidade de traços de mulheres não-brancas. As redes sociais estão cheias de tutoriais de maquiagens com muitos produtos e passos, todas para fabricar a ‘beleza natural’. Algumas influenciadoras criticam tendências como essa, que sugerem um visual embranquecido como sinônimo de elegância e sofisticação. Elas defendem que trends como a Clean Girl ignoram como o racismo marginaliza as estéticas naturais de mulheres negras, e escancaram o fato do cabelo black não ser visto socialmente como refinado.
“Quando você pesquisa clean girl no Pinterest ou no TikTok, aparecem muitas meninas brancas, lisas e magras… Tem que escrever ‘black clean girl’ e ainda assim, quando aparecem meninas negras, elas minimizam os traços delas”, afirma a influenciadora digital, Carol Soares, de 25 anos.
Não-brancos têm pouco espaço nas plataformas
16,9% dos criadores de conteúdo eram pretos e 13,7% pardos, enquanto 67,5% se identificavam como brancos em 2022, segundo a pesquisa Creators e Negócios 22 YouPix Summit. No segmento da moda, 18,9% de criadores brasileiros são não brancos, enquanto as pessoas negras são 56% da população.
A pesquisa também menciona que o percentual de criadores indígenas manteve a mesma representatividade do ano anterior, mas não apresenta dados concretos sobre essa população. Na edição de 2021, a pesquisa apenas mencionou que 35% dos participantes eram não-brancos, sem detalhar a participação indígena.
Para mulheres não brancas alcançarem o visual ‘limpo’ promovido pela estética clean girl, muitas vezes é necessário recorrer a procedimentos caros e trabalhosos. Alisamentos e uso de laces (perucas) são exemplos das adaptações que escondem características naturais dessas mulheres.
Mas o cabelo é apenas um dos aspectos problemáticos. A clean girl aesthetic está associada a produtos de luxo que muitas vezes não atendem às necessidades específicas de pele e cabelo das mulheres negras. Além da barreira econômica para aderir à tendência.
XAMÂNICA, diretora criativa, estrategista de conteúdo e pesquisadora de culturas indígenas, explica que os ciclos do mercado da moda começam com os lançadores de tendências e opiniões. Eles influenciam o restante da cadeia ao longo do tempo, e isso vai se popularizando e se difundindo.
“Uma tendência, na verdade, nada mais é do que o reflexo das mudanças culturais, sociais, políticas e econômicas que ocorrem em nossa sociedade”, explica XAMÂNICA.
Novas protagonistas de tendências
Na contramão desse conceito, tendências protagonizadas por mulheres negras têm ganhado espaço nas redes sociais. É o caso das afropatys.
A estética das patricinhas negras, que exploram diferentes penteados, dreads, tranças e laces não é nova. A personagem Hillary Banks, da série “Um Maluco no Pedaço”, por exemplo, é considerada referência do estilo até hoje pelos looks que refletem a burguesia negra dos anos 1990.
Mas as afropatys não se limitam ao tom sofisticado de Hillary Banks. Algumas preferem composições com peças de alfaiataria, outras escolhem combinações chamativas na forma e nas cores. O rosa pode até predominar, mas não é a regra. Com o cabelo, acontece o mesmo. Seja natural, com trança, penteado, laces ou twists, ele só precisa ser destaque.
Outra estética que se popularizou rapidamente é a Latina Girl, que inclui influências latino-americanas e indígenas. A estética que se popularizou é marcada por lábios com contorno mais escuro que batom, gloss, sobrancelhas finas, franjas modeladas e baby hair estilizado. Calças de cintura baixa, camisas folgadas e acessórios abundantes — como argolas douradas e colares com referências religiosas — também são características da estética inspiradas nas cholas.
“Eu acho que não conseguimos discutir uma tendência indígena de forma única, pois temos uma diversidade de povos em contextos muito variados. Se pensarmos na América Latina, por exemplo, são muitas culturas diferentes”, comenta XAMÂNICA.
Historicamente, o termo chola foi utilizado de forma pejorativa por colonizadores para se referir a indígenas e pessoas miscigenadas da América Latina, mas foi ressignificado na moda nos anos 1990 por imigrantes latinas dos Estados Unidos.
Para a pesquisadora, a Latina Girl que está em alta também foi embranquecida, com a incorporação de elementos que não são de culturas indígenas.
Influenciadoras investem na mistura de estilos
Se você for uma consumidora assídua do TikTok, provavelmente já se deparou com a estética inspirada na cantora anglo-nigeriana Sade Adu. Um ícone do jazz, soul e R&B das décadas de 80 e 90, seu estilo é marcado por tons neutros, brincos de argola e toque minimalista.
A influenciadora digital Carol Soares, que acumula mais de 1,5 milhão de seguidores no Instagram e TikTok, por exemplo, se inspira na estética Sade Girl vez por outra, mas não se limita a ela. Ela conta que sua audiência engaja bastante em posts onde aparece usando roupas da tendência Coquette - caracterizada por vestidos com babados, corsets, rendas e transparências, geralmente em tons suaves e estampas florais.
“Eu não gosto de me rotular com um estilo só, sabe? Eu gosto de usar o que eu me sinto bem. Mas eu me identifico muito com o estilo Street e com o Coquette. Que não é um estilo protagonizado por meninas pretas”.
O planeta como fonte de inspiração
Outro estilo que a Carol revelou desejo de explorar é o Earthy Girl - em português, ‘garota terrestre’ -, que na moda combina uma estética ligada à natureza, inclusive nas cores, tecidos de fibras naturais e práticas de consumo consciente, como compra de produtos de segunda mão e de marcas éticas. “A Erykah Badu é a cara desse estilo. Uma coisa mais boho, com bastante maximalismo, muitos acessórios, roupas estampadas”, explica.
A estética, que se popularizou em 2023 no TiktTok tem como inspiração a cantora texana, e preza por elementos naturais, culturais e ancestrais, além de influências do boho chic – estilo com influências boêmias e hippies, caracterizado também por peças fluidas e estampadas. Cabelo natural, tranças, dreadlocks, lenços, turbantes e roupas leves também são outras marcas do estilo que tem o objetivo de remeter à cultura preta ancestral.
Para Paloma Botelho, consultora de moda e estilo pessoal, a estética negra evolui à medida que as mulheres aprendem a reconhecer e valorizar suas características fenotípicas. Cuidar dos cabelos e aprender técnicas de maquiagem adequadas aos tons de pele são alguns exemplos.
Ela observa que a televisão, especialmente novelas e reality shows, tem papel importante nesse processo. “A gente se vê representada por outras mulheres negras nesses espaços, com os seus cabelos naturais, com a sua estética, fenótipo e imagem. A cultura sendo apresentada ali, imageticamente, influencia e impacta bastante essas mudanças recentes”
Negritude também combina com delicadeza
Para Carol, a sociedade tende a associar as mulheres negras a uma imagem mais forte e bruta. “Quando a gente usa um estilo que é mais delicado e mais feminino, incomoda as pessoas. Eu já recebi algumas críticas por conta disso, mas eu vejo que muitas meninas gostam de me acompanhar porque se identificam”, conta.
A jovem influenciadora digital Ella Tascine, que conta com mais de 700 mil seguidores, somando TikTok e Instagram, tem uma experiência semelhante. Ela tem se dedicado a uma estética mais delicada, explorando tons claros e pastéis. Ao se deparar com falas como “ela é a única Clean Girl negra que existe, né?”, produziu um vídeo com o título: ‘Você pode ser delicada mesmo sendo negra’.
Nos comentários, as seguidoras concordavam. “Infelizmente, ainda associam mulheres negras com agressividade, mas podemos, sim, ser delicadas e femininas”, diz uma delas.
Ella produz conteúdo de beleza e estética, com foco no cuidado e na valorização do cabelo crespo. Com 14 anos, percebeu a ausência de conteúdo que contemplasse a diversidade de texturas de cabelo em plataformas como o TikTok. “Quando eu pesquiso penteados para cabelo crespo, aparece cabelo ondulado”, comenta.
O que Ella percebe no TikTok é parte de um problema maior: o racismo algorítmico. Esse é apenas um caso dos muitos que mostram como a exclusão é sistemática. Em 2019, buscas no Google por “tranças bonitas” exibiam mulheres brancas com cabelos lisos, enquanto “tranças feias” traziam mulheres negras com cabelos crespos ou cacheados.
Algoritmo exclui mulheres negras
Paloma Botelho destaca a exclusão e o apagamento da população negra, especialmente das mulheres, nas redes sociais. Ela aponta que, além dos algoritmos, outro fator relevante é a falta de representatividade nas equipes que gerenciam conteúdo nas plataformas. “Essas informações nas redes não são, em sua maioria, geridas por pessoas negras” finaliza.
Em tese, o combate à desigualdade nas redes e plataformas digitais é importante para o setor de tecnologia, mas a prática não reflete isso. Enquanto 97% dos profissionais de tecnologia reconhecem a importância da diversidade, apenas 25% deles se envolvem em iniciativas que promovem inclusão, segundo o estudo Quem Coda BR.
Essa lacuna no desenvolvimento tecnológico que, ao mesmo tempo, reflete e molda o comportamento humano, faz com que influenciadoras como a Ella se tornem referência para muitas seguidoras. “Recebo mensagens de seguidoras dizendo que passaram a gostar mais do próprio cabelo depois de assistir aos meus vídeos”, afirma.
Explorando e adaptando possibilidades
Tanto Carol quanto Ella acreditam que a estética clean girl pode ser adaptada para incluir a individualidade de cada mulher.
“Não precisamos usar o tempo todo roupas claras ou seguir exatamente o padrão. Dá para incorporar penteados diferentes, como um afropuff ou um slick bun, mas sempre com a nossa personalidade” afirma Carol.
O afropuff é um penteado que destaca o volume natural do cabelo crespo ou cacheado, criando um ‘pompom’livre e desestruturado, enquanto o slick bun é um coque bem perfeito, ‘puxado’ com gel ou pomada.
Ambas as influenciadoras sentem que as meninas negras precisam de mais referências para descobrir possibilidades e encontrar o próprio estilo. Por trazerem esse tipo de conteúdo em suas redes sociais, as duas frequentemente recebem comentários positivos das suas seguidoras.
Outra maneira de buscar referências e inspiração é explorar as opções à margem do mercado. “Acho que é importante furar um pouco essas bolhas e tentar consumir de pequenos empreendedores. Esse também é um comportamento que está em alta, uma tendência: a economia compartilhada. A ideia é descentralizar um pouco os grandes mercados e monopólios de consumo e da indústria”, defende XAMÂNICA.
Ela explica que há muitos pequenos empreendedores nas regiões Norte e Nordeste produzindo moda que não recebe visibilidade, constantemente rotulada como 'artesanato', como se tivesse menor valor. Mas, as tecnologias manuais que vêm de grupos tradicionais dessas regiões, como o crochê e o bordado, mostram que esse mercado está vivo e ativo.
Influenciadoras de moda não-brancas para acompanhar:
*A reportagem original pode ser consultada no portal d'AzMina.