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SIGA NOMinha mãe, Thereza Quintella, durante nove anos morou em São Conrado. Quando eu me hospedava com ela, cada vez que saía ou voltava à casa via uma rua vizinha à sua chamada Gabriel Garcia Moreno. Parecia-me estranho que o Rio de Janeiro homenageasse um dos mais autoritários presidentes do Equador, ultraconservador e ultramontano.
Garcia Moreno morreu assassinado em 1875. Chegava ao palácio presidencial, vindo da missa na catedral, situada na mesma praça, quando foi atacado a tiros e punhaladas. Juan Montalvo, escritor então exilado, opositor do presidente, publicara poucos meses antes um panfleto contra ele, “A ditadura perpétua”. Ao saber do assassinato, exclamou: “Minha pluma o matou”. Conto essa história em meu livro “Geografia do tempo” (2024), como exemplo do poder que a palavra escrita já possuiu.
Voltaire foi um precursor nesse gênero de visibilidade. Sua celebridade era de alcance europeu. Seu “Tratado sobre a intolerância” levou à reabilitação do nome de um condenado à morte, executado por um crime que não cometera. O retorno do escritor a Paris pouco antes de morrer, em 1778, após uma ausência de 28 anos, foi uma apoteose, assim como a transferência, em 1791, de seus restos mortais ao Panteão.
Durante todo o século XIX, os escritores mais famosos exerceram algum tipo de poder, não político – embora Chateaubriand e Lamartine tenham sido ministros das Relações Exteriores da França – mas sobre a mente de seus leitores. A fama de Balzac era tão forte que a condessa polonesa Evelina Hanska, nas suas terras situadas no outro lado da Europa, no que é hoje território ucraniano, ficou apaixonada pelos seus livros. Enviou-lhe cartas e, dezoito anos depois, poucos meses antes da morte de Balzac, casou-se com ele.
A cerimônia realizou-se em 1850, na cidadezinha de Berdichev, na Ucrânia. Tudo isso parece tão fantasioso que Tchekhov, na peça “As três irmãs” (1900), faz um de seus personagens murmurar, enquanto lê o jornal: “Balzac casou-se em Berdichev” e anotar a informação. Se Balzac, o mais famoso romancista francês da sua geração, se casou no que era então o interior do Império russo, então as coisas mais surpreendentes podem acontecer em uma existência humana. Em 1857, Joseph Conrad nasceria em Berdichev.
Nenhum escritor, hoje, poderia almejar um grau de popularidade semelhante ao usufruído, em vida, por Victor Hugo. Raul do Rio Branco, em suas “Reminiscências do barão do Rio Branco” (1942), conta como ele e seu pai, o Barão, testemunharam em Paris, em 1885, o velório público do escritor. O catafalco estava exposto sob o Arco do Triunfo e “a multidão a pé e de carro enchia os Champs-Elysées até a Étoile”. Opina o diplomata: “não creio que a nenhum outro homem se tenha feito vigília mortuária tão imponente e grandiosa”.
É o caso de se indagar qual é o sentido ainda de escrever, se o impacto causado por Byron, Balzac, Victor Hugo, Dickens, Tolstói, Castro Alves enquanto eram vivos não pode mais ser replicado. Entre os escritores da atualidade, lembro apenas de Salman Rushdie, com a glória e o pesadelo de ter uma fatwa proclamada contra si, como capaz de despertar paixões. As mais demonstrativas dessas paixões, porém, não podem ser categorizadas como de admiração.
Um dia, perguntei a um amigo como estava sua família. A resposta incluiu a frase: “meu filho deixou de ser artista plástico”. Isso me pareceu estranho. Ninguém “está” artista, ninguém “deixa” de ser artista. A pessoa é artista ou não é. Se a arte não é de qualidade, seu praticante, se tiver bom senso, deixará de expô-la, mas se sente o ímpeto de criar, não deixará de fazê-lo. Da mesma forma, o verdadeiro escritor pode escrever apenas para si mesmo, sem preocupação de ter seus textos divulgados, mas não se obriga a escrever contra a sua vontade – escreve porque precisa escrever.
Mais relevante do que a indagação sobre se vale a pena escrever é analisar se é útil publicar. Entendo que alguém escreva e prefira nunca vir a público. Há muitos motivos para essa decisão, inclusive a crença de que tudo já foi dito, tudo já foi escrito, de que nunca mais haverá um talento como o de Machado de Assis. Faz sentido não querer causar o derrubamento de mais uma árvore para lançar um livro que poucos, se tanto, lerão.
Mas justamente, o importante é não esperar ser um novo Machado de Assis. Machado existiu, escreveu uma obra única, seus livros continuarão a viver. Cada um deve buscar a sua voz própria.
Há um ano, muitos desses pensamentos me ocupavam. Em outubro de 2024, em Kuala Lumpur, decidi abruptamente passar um fim de semana na ilha de Langkawi. Não viajei sozinho. Levei comigo a versão final de “Geografia do tempo”, que eu precisava corrigir, estando sua publicação prevista, no Rio de Janeiro, para algumas semanas depois. Àquela altura, revisar o meu texto, em um exercício que já durava um ano – o livro deveria ter saído no final de 2023; mas eu mudara de editora, e o processo recomeçara – soava como uma atividade infinita e exaustiva.
Rebelei-me. Isolado em uma praia no Mar de Andaman, rejeitei a vaidade envolvida no ato de publicar. Julguei que a desistência seria uma alternativa legítima. Só persisti por causa das pessoas que mais amo. Percebi que, tendo chegado tão perto da reta final, não devia decepcioná-las. Com o Sol na cabeça, peguei o trem azul.
Passado um ano, “Geografia do tempo” mudou a minha vida, mudou a maneira de eu pensar. Trouxe-me novos amigos. Gerou muitas alegrias, culminadas com a sua seleção, agora em outubro, como finalista do Prêmio Jabuti.
Afinal, Balzac casou-se em Berdichev.
• Ary Quintella escreve quinzenalmente para o Estado de Minas. Publicou em 2024 o livro “Geografia do tempo”, finalista este ano do Prêmio Jabuti, na categoria Crônica.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
