Botas diplomáticas
Presenteadas a um governante estrangeiro, ajudariam a promover a marca e as exportações do produto
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A notícia de que o governo do Catar estaria doando um Boeing 747 para servir de novo Air Force One para o presidente dos Estados Unidos gera discussões sobre a conveniência de que o presente seja aceito. O debate me fez tirar da estante o livro de um diplomata britânico, Paul Brummell, publicado em 2022, “Presentes diplomáticos” (foto).
Ali são analisados, de forma espirituosa, 50 presentes — da Estátua da Liberdade a cisnes, queijos, louças e pinturas — trocados ao longo da história entre países, povos ou chefes de Estado, e a mensagem que procuraram transmitir.
Brummell insere cada objeto em seu contexto histórico e cultural e aponta aspectos sociológicos do ato de presentear. Cita várias vezes o sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss, por conta da sua obra clássica, “Ensaio sobre o Dom”, de 1925. O livro “Estruturas da vida social”, do antropólogo americano Alan Fiske, em que os relacionamentos humanos são divididos em quatro tipos, foi também uma fonte para a visão de Brummell.
Tanto a introdução quanto a conclusão mencionam anedotas pitorescas. Só isso já indicaria ser o autor um diplomata, pois diplomatas adoram contar anedotas, embora raramente o façam de maneira tão inteligente, instruída e engraçada como Brummell. Lemos sobre o filhote de camelo que François Hollande, então presidente da França, recebeu do governo do Mali em 2013, quando visitava o país. Seus assessores deixaram o animal com uma família em Tombuctu, até que providências fossem tomadas para transportá-lo à França. Por um erro de compreensão, o filhote “serviu de ingrediente principal para um tagine particularmente delicioso”.
Os dois pandas presenteados pela China ao Japão, em 1972, foram um exemplo daquilo que, criança, aprendi chamar-se “diplomacia do panda”. Quando minha família e eu fomos morar em Washington, em 1994, pudemos ainda conhecer Hsing-Hsing, sobrevivente do célebre casal doado, também em 1972, aos Estados Unidos. Ling-Ling morrera em 1992. Durante muitos anos, nos diz Brummell, pandas serviram de presente excepcionalmente prestigioso, para a China e para o país destinatário: raro e encantador, e por essas razões admirado no exterior, o animal é exclusivamente chinês, servindo de cartão postal para o país.
Animais são numerosos entre os presentes analisados no livro. Em 1514, D. Manuel, o Venturoso, destinatário da Carta de Pero Vaz de Caminha, enviou um elefante indiano ao Papa Leão X. Ao contrário dos pandas em relação à China, o elefante não simboliza Portugal. O objetivo do rei era demonstrar a expansão territorial de Portugal em outros continentes, o seu poderio marítimo. Leão X, membro hedonístico da família dos Médicis, adorou o elefante, que morreria dois anos depois em Roma.
É notável o capítulo sobre os Três Reis Magos, sua viagem para conhecer o Menino Jesus e os presentes que levaram. O tema, mencionado apenas em um parágrafo do Evangelho segundo Mateus — que não nos fornece seus nomes, não diz que eram reis e nem sequer que eram três —, foi ao longo dos séculos adquirindo importância cultural e religiosa. Contida na história dos presentes oferecidos pelos magos, há a menção a outra doação, a dos seus ossos ao arcebispo de Colônia em 1162. Na catedral daquela cidade, um relicário medieval, dourado, contém teoricamente os restos mortais de Melchior, Baltasar e Gaspar. A narrativa de Brummell, cativante, me fez sentir pena, por um momento, de não poder me deslocar imediatamente a Colônia e rever o relicário.
Há dois capítulos envolvendo diamantes. No primeiro, o xá da Pérsia envia seu neto a São Petersburgo, em 1829, para se fazer perdoar pelo massacre, por uma multidão, dos funcionários da Embaixada da Rússia em Teerã, incluindo o embaixador, Aleksandr Griboiedov. A figura de Griboiedov, cujo cadáver desfigurado e decapitado representa os riscos da vida diplomática, me interessa há muitos anos. Também escritor, ele hoje é lembrado como autor de uma peça de teatro. Brummell nos conta que a missão persa entregou ao tsar Nicolau I um diamante, exemplo de “presente oferecido para pedir desculpas e evitar penalidade”.
A outra história refere-se a muitos diamantes, aqueles recebidos pelo presidente da França Valéry Giscard D´Estaing de Jean-Bédel Bokassa, presidente e depois imperador centro-africano. L´affaire des diamants estará para sempre ligada ao nome do presidente francês e contribuiu para que fracassasse sua tentativa de reeleição, em 1979.
Severo com Giscard d´Estaing, Brummell evita tratar de joias ligadas à monarquia inglesa. Fernando Morais, em “Chatô, o rei do Brasil” lembra como, em 1953, Assis Chateaubriand — fundador dos Diários Associados — escolheu, sem consultá-los, “oito felizardos” para que se cotizassem e pagassem, como presente de coroação brasileiro a Elizabeth II, “um conjunto de colar e brincos de águas-marinhas e brilhantes”. A rainha da Inglaterra, uma das mulheres mais ricas do mundo, aceitou o luxuoso conjunto, entregue em nome do povo de um país mais pobre. Usou o colar e os brincos frequentemente. Ainda hoje, de vez em quando, surgem notícias na imprensa sobre joias doadas por potentados árabes a membros da família real britânica.
Brummell nos conta haver razões culturais e religiosas — entre elas “a tradição islâmica de presentear generosamente” — para que dons diplomáticos de valor material elevado venham agora sobretudo de países do Oriente Médio.
Em 2008, o primeiro-ministro da Austrália, Kevin Rudd, ofereceu ao presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhoyono, um par de botas da marca R. M. Williams. Símbolo australiano, as botas seriam “objetos desejáveis, mas não excessivamente caros”. Peças de vestuário, indicariam “uma relação amistosa entre os dois líderes”. Presenteadas a um governante estrangeiro, ajudariam a promover a marca e as exportações do produto. De todos os dons descritos no livro, talvez sejam, entre os mais recentes, o mais útil e o mais hábil.
O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente para o Estado de Minas. É autor do livro “Geografia do tempo”
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