O espaço do diplomata
A defesa dos interesses e da imagem do seu país constitui, por definição, o espaço do diplomata
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Recebi o convite em janeiro. O Festival de Arquitetura de Singapura, evento anual patrocinado pelo Singapore Institute of Architects, queria que eu fizesse uma apresentação sobre Roberto Burle Marx. Hesitei. O Festival seria em junho, quando eu já não estaria na Malásia, mas em Angola, longe do Sudeste Asiático. O Festival insistiu. Pensei que eu não deveria deixar passar uma nova oportunidade de divulgar o nome do grande paisagista brasileiro. Aceitei.
Em uma coluna nestas páginas publicada em fevereiro, “Da Pampulha para Kuala Lumpur”, falei do jardim projetado por Burle Marx na capital malásia e do livro “Um brasileiro em Kuala Lumpur: Roberto Burle Marx e o Parque KLCC”. Resultado particularmente tangível do meu trabalho como embaixador na Malásia, o livro serviu ao meu propósito de tornar o Brasil e seus maiores talentos mais conhecidos naquele país.
Cada edição do Festival de Arquitetura de Singapura é organizada por um arquiteto diferente. Este ano, a tarefa coube a Rene Tan, cujo estúdio é responsável pelo conjunto residencial que considero o mais espetacular de Kuala Lumpur, o Fennel, com o qual ganhou vários prêmios internacionais.
Seminários de três dias, com multiplicidade de palestras, mesas-redondas e estandes são como a batalha de Waterloo na forma descrita por Stendhal em “A Cartuxa de Parma”. Muita coisa acontece ao mesmo tempo, em diferentes lugares, e captamos somente aquilo que está ao alcance mais imediato do olhar. Apenas Rene Tan, que durante três dias circulou incessantemente de um lado a outro, terá podido avaliar o resultado final do Festival. Para os palestrantes, restava o privilégio de estar ali, no Centro de Convenções do icônico Marina Bay Sands, símbolo arquitetônico de Singapura por excelência.
No painel de que participei, Alexander Wong, de Hong Kong, que eu já conhecia, expôs sua atividade como projetista de salas de cinema na China, com desenho futurista arrojado, em trabalhos amplamente elogiados pela imprensa ocidental. Em outro painel, o indiano Ambrish Arora explicou como – ao criar um hotel em Jodhpur, no Rajastão, na base da montanha onde sobressai o Forte de Mehrangarh, edificado entre os séculos 15 e 17 – levou em conta a necessidade de não destoar da arquitetura histórica dos arredores, mas evitar, ao mesmo tempo, um pastiche. No dia seguinte, no café da manhã no hotel, descobriríamos uma amizade em comum, André Corrêa do Lago, presidente da COP30 e membro do júri do Prêmio Pritzker.
Renata Furlanetto incluíra em sua fala uma foto do Palácio do Itamaraty, com o jardim aquático em evidência, idêntica a uma imagem que eu mostraria mais tarde em minha apresentação. Apontei não ser coincidência os dois brasileiros presentes no Festival exibirem um prédio que é, na conjunção da arquitetura de Oscar Niemeyer e do paisagismo de Burle Marx, um marco do modernismo brasileiro. Mostrar e ver em Singapura a sede da diplomacia brasileira, neste momento de tensões e incertezas geopolíticas, trouxe-me reconforto. A sua própria solidez parecia uma garantia de continuidade e equilíbrio.
Teria gostado de assistir a mais palestras no Festival. Perdi a de uma grande estrela, o japonês Riken Yamamoto, ganhador do Pritzker em 2024. Jantando com alguns dos participantes, conversei com o austríaco Dietmar Eberle. Sediado em Bregenz, ele me explicou que o grau de prosperidade da sua região geográfica é exemplificado pelo número elevado de museus de arte contemporânea ali abrigados. Por esse cálculo, os milionários brasileiros precisam ainda desenvolver a filantropia na área da museografia – e em tantas outras –, mas minha primeira reação foi pensar no fato extraordinário de Inhotim existir no Brasil.
Ao final do painel de que eu participava, o moderador, Calvin Chua, retomando o tema do Festival este ano – “Não pense (apenas) como um arquiteto” –, perguntou o que nós, os quatro debatedores, sugeriríamos ao público como forma de pensar. Ofereci que pensassem como um diplomata. O diplomata um dia edita um livro sobre Burle Marx, no outro negocia um acordo internacional, mas seu objetivo final não varia ao procurar sempre promover a conciliação entre interesses por vezes distintos. Precisa, idealmente, desenvolver uma atitude serena, paciente, zen, no fundo bastante asiática, se quisermos usar um clichê. Seria útil para todo mundo cultivar um temperamento assim no dia a dia.
Uma pergunta da plateia sondou como lidar com o conceito de espaço. Melhor indagação impossível, em um festival de arquitetura. Decidi responder falando do espaço a ser almejado pelo diplomata. A questão que se coloca para mim, ao trabalhar no exterior, é como me inserir na sociedade local para influenciá-la em favor do Brasil. A defesa dos interesses e da imagem do seu país constitui, por definição, o espaço do diplomata. É no cumprimento desse dever, e não na expectativa de reconhecimento, que encontramos o propósito e a gratificação da vida profissional.
A palestra em Singapura permitiu-me incluir curtas estadas, na ida e na volta, em Kuala Lumpur. Foi maravilhoso rever amigos nas duas cidades, nessa intensa viagem de uma semana. No último dia, uma jornalista malásia me perguntou se voltar ao Sudeste Asiático, de onde eu partira em fevereiro, me causava nostalgia. Respondi com sinceridade que não. Meus cinco anos em Kuala Lumpur foram perfeitamente felizes. Voltar menos de cinco meses depois proporcionara momentos mágicos. Mais importante do que o espaço exterior, contudo, é o espaço interno.
Esse começa vazio, enorme, infinito. Gradualmente, como pedras ou tijolos em uma construção física, família, amigos, lugares, livros, obras de arte, o tempo e a memória vão construindo um edifício. Onde eu estiver, ele sobrevive, continuamente acrescentando andares, mais sólido do que qualquer arranha-céu, casa ou gabinete.
O embaixador Ary Quintella lançou em novembro de 2024 o livro “Geografia do tempo”. Escreve quinzenalmente para o Estado de Minas.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.