Cenários do poder
Uma coisa é certa: os títulos dos governantes e os nomes de suas residências mudam, mas, perduram as cortes e as intrigas em torno do exercício do poder
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Como nos lembra o historiador Thierry Sarmant no livro que publicou este ano, “História dos palácios: o poder e sua encenação na França, do século V ao XXI”, os locais onde vivem e trabalham os governantes sofrem constantes evoluções.
Há poucos meses, o presidente da França abriu as portas do Palácio do Élysée à cadeia norte-americana de notícias CNN. Entre os temas de que tratou com o jornalista Richard Quest estiveram inteligência artificial, Gaza, sua ambição por uma maior independência estratégica da União Europeia e a guerra na Ucrânia. Pouco pressionado pelo entrevistador, Emmanuel Macron transformou a ocasião em um monólogo, em um inglês fluente mas com sotaque.
Ao final da conversa, exibiu algumas salas do Élysée. Comentaristas franceses apontaram a raridade do tour assim proporcionado pelo presidente. Nas imagens que registram a visita nota-se o contraste entre de um lado obras de arte e peças de mobiliário contemporâneas, de outro móveis do século XVIII e entalhes dourados nas paredes do edifício, construído a partir de 1722 para um membro da alta nobreza.
No Salão Cleópatra, a tapeçaria mostrando o encontro entre Marco Antonio e a rainha egípcia, que empresta seu nome ao aposento, foi retirada. Em seu lugar, pendurou-se uma obra recente e estridente. No Salão Pompadour está exposta outra tapeçaria, “Mulher no espelho”, baseada em uma litogravura de Joan Miró. Minha peça predileta é uma escultura em mármore e bronze por Arman, “Tributo à Revolução de 1789”, encomendada por François Mitterrand para celebrar o bicentenário da Revolução. Colocada no vestíbulo, é a primeira visão que os visitantes ilustres recebem do interior do palácio.
Sobram hoje poucos vestígios dos locais de residência dos reis Merovíngios. Sarmant entende, no entanto, que as jóias e os móveis luxuosos que sobreviveram – como o trono de Dagoberto, que uma vez vi em uma exposição em Veneza – permitem pensar que aqueles soberanos do início da Idade Média viviam de maneira menos rústica do que imaginamos.
Já dos Carolíngios restam ainda prédios, embora o mais famoso deles, a Capela Palatina em Aix-la-Chapelle, ou Aachen, esteja situado no que é hoje território da Alemanha. A partir dos Capetos, Paris gradualmente se impõe como capital, e vários castelos dos monarcas, na cidade principal ou perto dela – o Palais de la Cité, o Louvre, Vincennes, Fontainebleau, Saint-Germain-en-Laye – passam a ter perenidade, embora sofram importantes mutações com o tempo. Nos últimos cem anos da monarquia absolutista, Versalhes passa a ser, como sabemos, a residência preponderante.
Sarmant nos mostra como o Elysée, casa e escritório do presidente da República Francesa desde a década de 1870, excluindo-se o período da II Grande Guerra, marcado pela ocupação alemã, é modificado pelos titulares do cargo. Em geral, os presidentes preferem mobília Luís XV ou Luís XVI. Georges e Claude Pompidou, assim como Emmanuel e Brigitte Macron, são exceções, e optaram por artistas e projetistas modernos.
Uma moral que extraí da leitura de “Histoire des palais” é a transitoriedade até mesmo do poder aparentemente mais sólido. O gradual fortalecimento, ao longo de 800 anos, com sobressaltos, dos Capetos e seus ramos Valois e Bourbon, que resultou na unificação territorial da França e no absolutismo, é eliminado em um par de anos, entre 1789 e 1792. Edificados durante séculos, os palácios da dinastia são rapidamente apropriados por novos governantes, sobretudo aqueles situados em Paris e seu entorno. Versalhes, com sua excessiva carga simbólica, é a exceção.
O Palácio das Tulherias, última morada de Luís XVI e Maria Antonieta antes da sua prisão e da abolição da monarquia em setembro de 1792, é o caso mais emblemático. Já em maio de 1793, lá se instala a Convenção Nacional revolucionária. Como aponta Sarmant, todos os regimes do século XIX que governaram a partir das Tulherias “buscaram o fausto monárquico, na suposição de que assim impressionariam os franceses, mas isso não salvou nem Napoleão I em 1814, nem Carlos X em 1830, nem Luís Filipe em 1848, nem Napoleão III em 1870”.
O Élysée tornou-se residência dos presidentes porque, apesar de suas conexões monárquicas – pertenceu a Luís XV; à sua favorita, a marquesa de Pompadour; a Napoleão I, que lá abdicou pela segunda vez em 1815 (e antes disso à sua irmã, Caroline Murat, rainha de Nápoles); e a Napoleão III – é um palácio de segunda divisão. Luxuoso, mas pequeno para padrões reais, e nunca residência oficial de soberanos franceses. Fica a dúvida no leitor se, caso as Tulherias não tivessem sido incendiadas pela Comuna em 1871, o regime republicano não teria cedido à tentação de lá se instalar.
Duas vezes trabalhei em palácios brasilienses, o Itamaraty e o Planalto. São obras-primas da arquitetura modernista brasileira, os mais bonitos de Brasília, junto com o Alvorada. O Itamaraty pareceu-me sempre acolhedor, apesar das salas subterrâneas. Como o Élysée sob alguns dos presidentes franceses, mas de maneira mais convincente, mistura quadros e móveis antigos com obras mais recentes, ajudado nisso pela arquitetura inovadora. O Planalto é elegante, mas francamente gélido. Sentar-se lá é como isolar-se de qualquer outra realidade física conhecida. Quanto ao Alvorada, são conhecidas as queixas de falta de privacidade de alguns de seus moradores.
A leitura me fez questionar a razão pela qual, em uma capital republicana, inaugurada em 1960, deu-se o nome de “Palácio” a esses e a outros edifícios de Brasília. O local ainda considerado o centro do poder no Ocidente é conhecido simplesmente como uma casa, a Casa Branca.
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Uma coisa é certa: os títulos dos governantes e os nomes de suas residências mudam, mas, como a natureza humana é uma só, perduram as cortes e as intrigas em torno do exercício do poder.
O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, é autor do livro “Geografia do tempo”. Escreve quinzenalmente para o Estado de Minas
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