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Ary Quintella
Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro de ensaios "Geografia do tempo"
ARTIGO

Memória diplomática

Não é usual que a partida de um diplomata aposentado desperte tanto interesse midiático, o que diz muito sobre a celebrada capacidade de Marcos de encantar inte

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Minha mãe, Thereza Quintella, cumpriu 87 anos em 27 de maio. Pedi uns dias de férias para viajar de Luanda ao Rio de Janeiroe comemorar a data com ela. Decidi maximizar a ida ao Brasil com uma noite de autógrafos em Brasília.
Fiquei feliz de rever tantos amigos, ao assinar dedicatórias de “Geografia do tempo” na Livraria da Travessa. Aquela seria minha única oportunidade de estar com eles, já que no dia seguinte eu regressaria ao Rio. A divulgação foi bem-sucedida e havia, na fila, muitas pessoas que eu não conhecia, cuja curiosidade fora despertada pelas entrevistas e matérias na imprensa ou em portais na internet. O primeiro a falar comigo na livraria, na verdade, estava ali por acaso.
Entrara para explorar as novidades, vira o aviso da noite de autógrafos e quisera saber mais.
Perguntou-me o sentido do título “Geografia do tempo”. Expliquei que uma das minhas indagações sobre o mundo é a constante variação entre a presença e a ausência de pessoas e lugares em nossas vidas. É um fluxo e refluxo em que podemos nunca mais reencontrar os seres mais queridos, por razões fora do nosso alcance; ou, ao contrário, circunstâncias imprevisíveis podem tornar as pessoas ainda mais presentes, por um período que será longo ou curto, mas jamais eterno.
Da mesma forma, avaliamos que um parque, uma cidade, um país, uma obra de arte ou um autor ficarão conosco para sempre; e no entanto, tantas vezes eles acabam por se perder para nós. A memória, assim, é como um ser independente.

O tempo nos faz lembrar de algumas pessoas e de alguns lugares, e esquecer de outros, e torna misteriosa, à medida que nos deslocamos por este mundo, a geografia dos nossos sentimentos.

Assinei exemplares de “Geografia do tempo” durante três horas e meia. Ao sair da livraria quando já fechavam as portas, liguei o celular e vi mensagens de minha mãe e de minha irmã avisando que, enquanto eu conversava com leitores e amigos em Brasília, no Rio falecera Marcos Azambuja.

Não é fácil discorrer sobre alguém com quem interagimos durante muitas décadas. As pessoas mudam com o avanço dos anos, e o Marcos Azambuja falecido em28 de maiode 2025, aos 90 anos, era distinto daquele que primeiro conheci quando ele estava na faixa dos quarenta. Minha própria avaliação a seu respeito não poderia ser a mesma de quando eu tinha 14 anos. Diante do seu falecimento tanto foi dito sobre ele, e da maneira mais elogiosa, na imprensa, nas redes sociais e nos noticiários de televisão, que parece difícil eu poder acrescentar algo.

Não é usual que a partida de um diplomata aposentado desperte tanto interesse midiático, o que diz muito sobre a celebrada capacidade de Marcos de encantar interlocutores. Sua trajetória diplomática, embora notável, por si só não justificaria tamanha comoção. Marcos não chegou a ser chanceler e sua gestão como secretário-geral das Relações Exteriores deu-se no mandato presidencial curto e conturbado de Fernando Collor de Mello. Sempre houve nele, porém, uma luz própria, uma inteligência vivaz, que não dependiam de funções ou cargos para se fazer visíveis e brilhar.
Quando o vi pela última vez, em julho de 2024, ele me lembrou que a aposentadoria lhe permitira dedicar-se a novas atividades, como palestrante em seminários, analista frequente sobre a situação internacional em telejornais, conselheiro de entidades privadas. Ao se aposentar, vira portas se abrirem. Pareceu considerar sua vida pós-Itamaraty tão estimulante, se não mais, do que a sua exitosa carreira diplomática.
Conhecido como frasista mordaz, daqueles que, como se diz, perdem o amigo mas não perdem a pilhéria, Marcos Azambuja era, na realidade e antes de mais nada, um hábil analista das situações. Isso valia tanto para a política e as relações internacionais como para os relacionamentos pessoais. Dissecava com lucidez e sem sentimentalismo os problemas do interlocutor e era, assim, objetivo e certeiro em seus conselhos. Para minha irmã, que foi sua nora e é mãe de dois de seus netos, ele se mostrou sempre um sogro afetuoso, atencioso, incentivador de seus projetos. Para minha mãe, um amigo cada vez mais presente com o passar dos anos.
O velório foi realizado, no Rio, no térreo do Palácio Itamaraty. Em 1912, o barão do Rio Branco lá também fora velado. Sem dúvida, Marcos teria apreciado essa homenagem. Andei pelas salas e corredores vazios — erasábadode manhã — daquela ala do Itamaraty. Naquele edifício tão carioca, cujo espaço me faz, no entanto, pensar em palácios romanos, iniciaram-se as carreiras de Marcos e de minha mãe.
Ali, durante décadas, de 1899 a 1970, antes de a diplomacia brasileira mudar-se para Brasília, sonhos e ambições pessoais, mas também projetos para o País, foram arquitetados e tocados adiante, ou, ao contrário, desmantelados, de maneira muitas vezes arbitrária. Pensei no hábito comum a alguns diplomatas de, tendo morado em diversos continentes e viajado incessantemente pelo mundo, virem a morrer na sua cidadenatal. Impossível decidir se há aí uma vitória do indivíduo sobre a geografia, ou da geografia sobre o indivíduo.
Vivenciar o dia a dia de maneira intensa, vibrante, é que era a forma de ser de Marcos Azambuja. Poucos dias antes de viajar ao Brasil, eu soubera pela minha mãe que ele preparava suas memórias. Se estiverem em estado de ser publicadas, trarão luz, com a efervescência e irreverência que o caracterizavam, sobre o que viu e ouviu em uma vida passada dentro do Itamaraty. No caso de Marcos, poderia haver uma vitória do indivíduo sobre o tempo.

O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente para o Estado de Minas

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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