Município mineiro tem uma unidade produtora a cada 323 moradores, o que o coloca na liderança entre as cidades com a maior concentração de estabelecimentos
Os irmãos Nivaldo e Lúcio Rezende fizeram um investimento de R$ 300 mil em 2019 para estruturar a produção da laminense crédito: Seapa/Divulgação
O município de Lamim, na Zona da Mata mineira, tem a maior concentração de cachaçarias em relação ao número de habitantes no Brasil. A cidade tem uma unidade produtora de cachaça para cada 323 moradores, conforme publicou o Anuário Cachaça 2025 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Com 10 estabelecimentos e pouco mais de 3 mil habitantes, Lamim vive uma espécie de renascimento da sua tradição produtora de cachaça depois que o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) começou a atuar na regulamentação dos alambiques na região.
Há cerca de 14 anos, o empresário Silbert Mourthe Marques comprou uma propriedade rural de 130 anos no município e resolveu reformá-la nos moldes originais. Mas foi só em 2022 que ele resolveu resgatar o alambique que funcionou ali há 80 anos, porém, com uma estrutura completamente atual. “Lamim tem tradição na produção de cachaça, mas nos últimos anos ela é feita basicamente para revenda, com atravessadores que praticam preços muito baixos. Apesar dos nossos alambiques fabricarem um produto de qualidade, eles não elevam o nível do produto”, explicou.
A produção anual da marca de cachaça Laminense gira em torno de 40 mil a 50 mil litros, basicamente sem envelhecimento Seapa/Divulgação
Apesar do pouco tempo de produção, apenas dois anos, Silbert escolheu o caminho da qualidade, vendendo hoje garrafas envelhecidas em barris de bálsamo, amburana, carvalho francês, carvalho americano, jequitibá e castanheira sob o selo da Arruda Destilaria. Ele conta que a interação da cachaça com a madeira só acontece em dornas de até 500 litros. “Se utilizar uma dorna de 3 mil litros, você vai apenas armazenar o produto e não envelhecer”, explicou.
Mas, o cuidado com a qualidade da cachaça vai muito além disso. O empresário conta que, em seu alambique com capacidade para 800 litros, mistura 650 litros de caldo de cana e 100 litros de água potável, utilizada para baixar o brix da cana (que é a concentração de sólidos solúveis) até um nível ideal para a fermentação. Com esse volume, após a fermentação, ele poderia produzir até 170 litros de cachaça. No entanto, com a retirada das chamadas “cabeça” e “rabo”, respectivamente o início e o fim do processo de destilação, ele produz em torno de 120 litros. “É onde você retira aquela parte que dá ressaca, que deixa bafo”, disse o produtor.
De acordo com Silbert, para garantir a qualidade, é importante ter controle de toda a produção, desde o cultivo da cana-de-açúcar até o envase. O empresário relata que a maior dificuldade está em comercializar o produto. Para isso, ele tem se aproximado do consumidor final, para entender as aspirações de quem está na ponta. Uma possibilidade de escoar a produção pode ser firmar parcerias com bares na produção de drinks com cachaça de boa qualidade, desenvolvido junto à conscientização sobre o que é uma boa cachaça.
Silbert Mourthe Marques, da Arruda Destilaria, destaca o foco na qualidade da bebida Seapa/Divulgação
Concorrência
Produzindo cachaça desde o ano 2000 em Lamim, Nivaldo Rezende fez um investimento de R$ 300 mil em 2019 para regularizar sua produção às normas sanitárias, valor que foi financiado pelo Banco do Brasil. Ele obteve seu registro junto ao IMA em 2021. A produção anual de sua marca de cachaça, a Laminense (o gentílico da cidade), gira em torno de 40 mil a 50 mil litros, basicamente sem envelhecimento. Nivaldo conta que envelheceu um lote de 300 garrafas de 750ml com um blend de três madeiras: carvalho, amburana e bálsamo. O processo de um ano foi terceirizado, mas, com o bom retorno, a ideia é investir em tonéis para envelhecimento.
De acordo com o produtor, enquanto uma garrafa de cachaça branca é vendida no atacado por R$ 25, uma envelhecida custa R$ 40. Mas o investimento não é pequeno. Um barril de 200 litros em carvalho custa cerca de R$ 3 mil, enquanto os de amburana e bálsamo custam R$ 2.500. “Esses são preços de barris de primeiro uso. Os de segundo uso custam uma média de R$ 800, mas, para ter o mesmo efeito, ao invés de envelhecer por um ano é preciso o dobro de tempo”, explicou. Nivaldo também pensa em ter uma estrutura para engarrafar sua produção, mas dentro de alguns meses a Laminense estará disponível em garrafas de 750ml de forma terceirizada.
“Dá trabalho regularizar a produção, o investimento é muito alto. O mercado é complicado, a cachaça industrializada de São Paulo vem muito barata. Então, depois de tanto investir, fica difícil competir”, relata Nivaldo. Ele e Silbert relatam uma prática comum de atravessadores que compram cachaças brancas de alambique, misturam com cachaça industrial e vendem como cachaça artesanal.
De acordo com Ubirajara Geraldo Pedrosa Júnior, secretário de Agricultura de Lamim, o município também pretende criar junto à Emater-MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais) um selo de qualidade para diferenciar a cachaça artesanal de Lamim da cachaça industrial. “A ideia é assegurar um melhor retorno aos produtores, segurar o avanço da cachaça industrial e dar segurança ao consumidor que procura por um produto de qualidade”, disse o secretário. Além disso, o município defende um incentivo fiscal para a cachaça artesanal, uma vantagem sobre o produto industrial.
Garrafas da Arruda destilaria Seapa/Divulgação
Registro
Flávio Alves Santos, fiscal agropecuário químico do IMA, explica que, para um produto ser classificado como cachaça, deve atender a padrões de identidade e qualidade como limites de teor alcoólico, acidez e contaminantes (como álcoois superiores, cobre, metanol), tudo aferido em um laboratório. “A cachaça de alambique, produzida dentro dos padrões sanitários e registrada, ganha valor agregado. Esse é o caminho para obter um produto de qualidade”, disse.
Um indicativo de que a bebida é de boa qualidade está no rótulo, se o produto é identificado como uma “cachaça de alambique”. Outra vantagem de se trabalhar com um produto registrado, disse Flávio, é participar do Concurso de Avaliação da Qualidade das Cachaças de Alambique e Aguardentes de Cana Mineiras da Emater-MG, que dá uma boa projeção para as cachaças premiadas, o que também agrega valor.
No caso de Lamim, Flávio garante que, após a regulamentação, os produtores viram que a cachaça passou a ter mais aceitação e foi valorizada: “Antes, alguns produtores vendiam uma garrafa PET com 2 litros de cachaça por R$ 4, mas, hoje, o litro é vendido por R$ 30. Com isso, um produtor foi puxando o outro e foi tirando a resistência quanto à fiscalização do IMA”.
“Os produtores pensavam que, para registar o alambique, teria que ter uma marca e vender engarrafado, mas não é necessário. Eles podem continuar vendendo a granel. Em Lamim a maioria dos produtores são atacadistas. A região tem clima ameno e chove bem. Eles conseguem produzir de fevereiro a novembro. Param só nos meses com maior incidência de chuva, quando fica difícil fazer a colheita”, explicou o fiscal agropecuário.
Garrafas da Arruda destilaria Seapa/Divulgação
Incentivo
Com o título de cidade com maior número de cachaçarias por habitante, Lamim quer aumentar a participação da cachaça na economia local. De acordo com o secretário municipal de Agricultura, Lamim se destaca na produção de carvão vegetal e na pecuária de leite. “Um dos fatores que determinaram a tradição de produzir cachaça aqui é a parte que sobrava da produção de cana-de-açúcar para tratar o gado”, explicou Pedrosa. Hoje, a cidade conta com 70 hectares dedicados ao plantio da cana-de-açúcar.
De acordo com o secretário de Agricultura, em breve a cidade terá 11 cachaçarias em atividade no município, o que deve assegurar o título faturado em 2025. A gestão municipal está conversando com os produtores de cachaça para formar uma associação. “A gente já tem um número bom de produtores que têm interesse, até alguns que pararam de produzir. Devido à recente visibilidade dada pelo anuário do Mapa, eles querem voltar. Com a associação fica mais em conta produzir, porque divide os custos e todos crescem juntos”, explicou.
O calendário da cidade já está tomado de eventos ligados à cachaça. Em setembro, será realizado o primeiro seminário da cachaça na cidade, com a participação de alguns produtores que passaram pela fiscalização do IMA, persistiram e estão no mercado. Em outubro será ministrado um curso de produção de cachaça através do Senar Minas (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural). Em 2026 será realizado o primeiro Festival da Cachaça de Lamim. O IMA também está montando um circuito da cachaça na região para estimular o turismo no município, que chegou a ter 25 cachaçarias. Outra ação do município é a construção de um viveiro demonstrativo de mudas para fazer a repartição com os produtores. A Emater-MG indicou uma muda específica para a produção de cachaça.
LEI ESTADUAL
Ainda neste mês de agosto, o governo de Minas Gerais sancionou uma lei que desburocratiza o processo de produção e comercialização da cachaça. O texto da Lei n° 25.424 regulamenta a produção da bebida conforme as normas higiênico-sanitárias. Além de seguir essas regras, esses estabelecimentos também precisam manter a documentação em dia para evitar o risco de penalidades como multas e, em último caso, a suspensão da atividade. "Essa lei é de importância histórica para o estado, além fazer com que inúmeros estabelecimentos que estão na fila, aguardando vistoria do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), passem a ter os seus documentos analisados em um prazo menor, sobretudo pela capilaridade que o IMA tem", explicou Lucas Silva Ferreira Guimarães, gerente de inspeção de produtos de origem vegetal do IMA. Para ele, este instrumento trará justiça para quem deseja produzir a bebida de forma regulamentada e sustentável em Minas Gerais.